A poesia,
antes de se tornar o inutensílio mais nobre da literatura, era uma “arte das
musas”, irmã da música, ritmo, uma pulsão estética inata ao homem. Esse traço
de origem, primitivo e atávico, tornou-se um referente, uma identidade sonora
para a palavra dos poetas e, em alguns casos, um atalho para seguir o
itinerário de uma poesia que se anuncia, física e espiritualmente, ligada à
música. Um dos poetas a que me refiro é Manuel Bandeira, autor de
“Pneumotórax”, poema essencialmente primevo, apesar de publicado em Libertinagem (1930), quarto livro do
autor.
Acreditava-se
que a vocação profissional do jovem Manuel Bandeira o chamava para a
arquitetura. Como se sabe, em 1890, Bandeira deixa a cidade de Recife, muda-se
com a família para o Rio de Janeiro e, em 1903, vai para São Paulo, onde se
matriculou no curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica. No seu Itinerário de Pasárgada (Nova Fronteira,
1984, p. 27), o poeta narra: “Não era minha ambição ser poeta e sim arquiteto,
gosto que me foi muito jeitosamente incutido por meu pai. (...) Se eu escrevia
versos, era com o mesmo espírito desportivo com que me equilibrava sobre um
barril lançado a toda a força das pernas, o que de modo nenhum me fazia sentir
com vocação pra artista de circo”.
Começaria
naquele ano, em que chegou a São Paulo, outra vida, seguiria a carreira
profissional desejada e deixaria as incipientes experiências poéticas
infanto-juvenis guardadas para sempre. Mas, com pouco tempo, o seu destino se
revelou diferente, com notas de tragédia ― conceito aqui tomado como era para
os gregos de Sófocles ―, fazendo o esperado ceder lugar para o estranho, o não
habitual. Cabe recordar que a tragédia grega possui caráter universal. Seu
conceito de destino tem, por pressuposto, atingir a todos os homens de todas as
épocas. Frente ao trágico, cada um de nós, inevitavelmente, vai se flagrar
indagando sobre as limitações de nossa condição humana e sobre como lidar
melhor com as nossas fraquezas e insuficiências.
Essa irrupção
trágica veio no final de 1904, Bandeira adoeceu e foi diagnosticado tísico. A
doença impunha-lhe outra expectativa de destino, breve e mórbido. Viu-se
obrigado a abandonar os estudos e iniciar, apesar de não contar com uma boa
situação financeira, uma rotina de viagens. Esteve em várias cidades em busca
de condições climáticas adequadas para o tratamento de sua saúde, chegando a
passar um período em Clavadel, na Suíça, lugar decisivo em seu itinerário pelo
trágico até a libertinagem.
Num outro
trecho do Itinerário de Pasárgada (1984,
p. 131), o poeta discorre: “Quando
cai doente em 1904, fiquei certo de morrer dentro de pouco tempo: a tuberculose
era ainda a “moléstia que não perdoa”. Mas fui vivendo, morre-não-morre, e em
1914 o doutor Bodmer, médico-chefe do sanatório de Clavadel, tendo-lhe eu
perguntado quantos anos me restariam de vida, me respondeu assim: O senhor tem
lesões teoricamente incompatíveis com a vida; no entanto, está sem bacilos,
come bem, dorme bem, não apresenta em suma nenhum sintoma alarmante. Pode viver
cinco, dez, quinze anos... Quem poderá dizer? Continuei esperando a morte para
qualquer momento, vivendo sempre como que provisoriamente”.
Essa condição
provisória, o “morre-não-morre”, continha a condição trágica que revelaria o
poeta de A cinza das horas, em 1917:
“Foi nesses treze anos que tomei consciência de minhas limitações, nesses treze
anos que formei a minha técnica”, afirma Bandeira (1984, p. 29). A doença
trouxe-lhe a ociosidade, mas também a necessidade de ocupar as horas cinzentas
e anular o sentimento de inutilidade. Os versos, antes escritos por
divertimento, ressurgem no centro da tragédia pessoal, por fatalidade, por
necessidade.
Bandeira
assume, com invejável disciplina, uma postura de leitor interessado e investiga
o processo criativo de seus poetas prediletos e transpõe para a escrita de
novos versos o aprendizado que adquire. Cotejou bons e maus poetas. Estudou
música, ritmos, impregnou-se de melodias. Concluiu, antes de ler Mallarmé, que
poesia se faz com palavras. Deixou-se influenciar e escreveu até sentir o
ímpeto de publicar. A morte anunciada iria, aos poucos, mas percuciente, se
acomodar à vida, mas para isso seria preciso reencenar a consulta com o Dr.
Bodmer, em Clavadel.
É bastante
curioso o fato de Bandeira (1984, p. 53) afirmar ainda no seu volume de
memórias Itinerário de Pasárgada, que
“Essa estada de pouco mais de um ano em Clavadel quase nenhuma influência exerceu
sobre mim literariamente...”. Entendemos que essa afirmação se intensifica com
o fato de Bandeira também deixar ao largo de suas memórias o poema
“Pneumotórax” que, inegavelmente, tem suas raízes no sanatório daquela cidade.
De certa
maneira é explicável o fato de Clavadel não constar como uma referência poética
maior para Bandeira, já que se trata do lugar onde tomou consciência de ser
portador de “lesões incompatíveis com vida”. Mas foi justamente a partir de
Clavadel que lhe notamos uma aproximação cada vez mais íntima e constante com o
universo da poesia e que o levaria a detentor de uma invejável formação lírica.
A partir daquele diagnóstico, a morte sempre vizinha, que levaria o “menino
doente”, conferiu-lhe uma poeticidade singular aos versos criados “como quem
morre”.
O poema
“Pneumotórax”, de irrecusável traço autobiográfico, parece-nos afirmar que,
após um tempo de profunda imersão mórbida, o poeta tenha adquirido, por
saturação talvez, condição de conviver com a “Indesejada das gentes” de modo
humorístico, mas um humor sem riso.
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
— Respire.
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Nesse poema,
tem-se o reencontro com Clavadel e com o espectro do Dr. Bodmer. Bandeira
apresenta-nos uma releitura de sua tragédia particular assumindo a perspectiva
do humor irônico. A encenação de uma consulta médica, retratada de maneira
visual e sonora, reinventa a peripécia do diagnóstico.
Inicia-se
expondo os sintomas gerados pela doença, caracterizados pela indisposição
corporal: “Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.” À apresentação dos
sintomas, segue-se um verso lapidar, um aforismo preciso, que configura uma síntese
existencial perfeita: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi.” A
estrutura anafórica do verso “Tosse, tosse, tosse.” sugere a presença continua
do mal instalado no peito e na voz.
A segunda
estrofe dá plasticidade para a cena da consulta e do diálogo entre o médico e o
paciente. Nela, as reticências que pontilham o verso sugerem as dificuldades de
uma respiração profunda e cansada. Esses momentos reticentes insinuam uma
retomada de fôlego do paciente que se prepara para o diagnóstico.
Os versos finais simulam a
irreversibilidade do destino ao contrastarem a fala precisa do doutor e a
indagação interessada do paciente:
— O
senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
E, com o
último verso, Bandeira funda a imagem substancial do espetáculo de sua poética,
apresentado com passos rítmicos entrecortados de dor e de humor:
— Não. A única coisa a fazer é tocar um
tango argentino.
Esta imagem,
“tocar um tango argentino”, comporta, implicitamente, uma função
metalinguística. Entendemos que Bandeira buscou alcançar nesse último verso a
dramaticidade que melhor lhe convinha ao humor, com direito à música, à
pluralidade emotiva, à visceralidade e ao ensimesmamento que o caracterizam
como poeta. Em outras palavras, o “menino doente” foi seguir seu itinerário até
Pasárgada, foi, por aconselhamento médico, tocar seu “tango argentino”. Não um
“samba”, não um “frevo”, não um “jazz”, mas um “tango”, com ênfase abstrata no
gentílico “argentino”, indicando o espírito de uma identidade trágica que se
encarnará em versos.
Nossa
perspectiva é a de que, em “Pneumotórax”, o “tango argentino” é o signo de uma
manifestação desterritorializada de um modus
vivendi, que se reterritorializa poeticamente em Bandeira, como uma
condição intrinsecamente ligada à experimentação do ritmo melancólico da vida e
dos humores e sortilégios de uma realidade amarga.
O tango se
sabe tocando, dançando, ouvindo. Mas podemos verbalizar algumas de suas
imagens, um pouco de sua alma, respaldadas pelas vozes dos poetas Enrique
Santos Discépolo, Jorge Luis Borges, José Gobello e Ernesto Sábato. Para
Discépolo, o tango “é um pensamento triste que se pode bailar”. Para Borges, o
tango é “uma forma de caminhar pela vida”. Para Gobello, o tango “não foi feito
para se cantar o que se tem, mas o que se perdeu”. Para Sábato, o tango “é
dramático, é introvertido, introspectivo, trágico...”. Em comum nesses
comentários, acentua-se uma percepção do tango como manifestação externalizada
de um drama íntimo, uma tristeza de estar-no-mundo que os tangueiros irão
assumir publicamente, com singular beleza.
De origem
controversa e multifacética, o tango esteve a princípio identificado com o
submundo dos bordéis e dos cabarés, com a malandragem e com a vida proletária.
Aos poucos, ganhou lugar nas casas de família e mais tarde conquistou os salões
das elites que se renderam à sua languidez e melancolia, à voz de Carlos Gardel
e ao bandoneón de Astor Piazzolla.
Seus temas
estão ligados a motivos transgressores, formando uma cadeia de ideias que, ao
mesmo tempo, alimenta sua aura como o rotula com impressões estereotipadas. Não
raro, o tango é associado a imagens de seres obscuros, deserdados, um sem número
de solitários tragicômicos que se autoflagelam por perdas e desvios morais,
amores e traições. Mas, igualmente, corrobora imagens de sensibilidade extrema,
remetendo ao passado distante, à infância, à nostalgia da terra distante. Tudo
amalgamado em uma atmosfera de tristeza única, que dá ao tango uma identidade
tonal que não encontramos em outros gêneros que também se ancoram em temáticas
tristes, como o fado ou o flamenco.
Em
“Pneumotórax”, quando Bandeira se refere ao “tango argentino”, antecedido por
um abrupto “Não”, estabelece uma quebra de ritmo, de compasso, uma mudança na
respiração do poema. Aos olhos da crítica literária brasileira, essa quebra tem
efeito nonsense, devendo ser compreendida como uma reação de humor cáustico,
autoirônico, contra o infortúnio da doença. Assim a referência ao “tango” seria
meramente uma tirada espirituosa e fortuita, importando mais o efeito de
ruptura, de quebra de expectativa.
Mas
acreditamos que o gesto de humor, a escolha da imagem inusitada, tenha sua
origem concernente ao encantamento que, na década de 1920, o tango provocava
nos ouvidos brasileiros. No momento em que o poema é publicado, livro Libertinagem de 1930, a voz de Carlos
Gardel é dona de um sucesso arrebatador. O tango argentino popularizava-se, era
assimilado em nosso país. Muitas composições portenhas foram interpretadas, traduzidas
e relidas por nossos melhores músicos e cantores. Portanto, a imagem do “tango
argentino”, no verso cabal de Bandeira, tem sua razão de ser e o seu
significado, mesmo que de modo inconfesso, irá se propagar em surdina por todo
conjunto de sua obra poética. O verso “A vida inteira que podia ter sido e que
não foi” era já, com toda sua intensidade trágica, uma manifestação desse
espírito emanado do tango.
Assim como o
tango surgiu no final do século XIX, para ser a melhor expressão do modo de
viver intenso, dramático e satírico, do portenho, a poesia irrompeu em Bandeira
para ser um modo de sentir e conceber apaixonadamente a tragédia e a comédia da
vida. O lirismo bandeiriano é refinado e técnico, como o desenho impecável de
um passo de tango sobre o chão. É profundamente sentimental e dolorido, intenso
e visceral. Lirismo que se abre ao amor volúpico, à irrefreável pulsão erótica
celebrada em mulheres puras ou degradadas. Lirismo de libertinagem, da tragédia
cotidiana, dos becos, da liberdade mundana, dos bares e cafés baratos. Lirismo
como tango, como uma forma de estar na vida, vivendo-a e transgredindo-a.
Em dado
momento de suas memórias, Bandeira (1984, p. 49) afirma: “Não há nada no mundo
de que eu goste mais do que de música”. Sim, gostava tanto que compôs, foi
musicado, citou ritmos, mas, sobretudo, foi sob conselho médico, encantada
solução poética, “tocar um tango argentino”. Foi experimentar outra sonoridade,
diferente daqueles sons roufenhos, tísicos, que insistiam de dentro do pulmão
doente, e trouxe, para o peito, o bandoleón.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA, Manuel. Itinerário
de Pasárgada. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
BANDEIRA, Manuel. A
cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1994.
BANDEIRA, Manuel. Libertinagem
& Estrela da Manhã. 16.ed. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 2000.
BORGES, Jorge L. "Historia del Tango". In: Prosa Completa, vol. 1. Barcelona:
Bruguera, s.d.p.
Poeta, prosador e
ensaísta, Jair Alves Corgozinho Filho é
um dos nomes mais significativos da produção literária mineira contemporânea
ainda sem livro solo publicado. Mestre em Literatura Brasileira e
Memória Cultural pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais, é um brilhante professor em Belo Horizonte, onde reside. Foi
co-fundador e secretário da Revista Orobó:
arte, poesia e crítica da cultura de 1997 a 1999 e integrará o Conselho Editorial
da publicação em seu retorno a partir de abril próximo. Idealizador e
Coordenador do Projeto Poético “A
necessidade do supérfluo” realizado em 2011 em Belo Horizonte.
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