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quarta-feira, 15 de junho de 2016

A produção da liberdade / Anelito de Oliveira


Escrever sobre algo – um objeto, um processo – de que se é parte integrante sempre é tarefa delicada. O risco de ficar num nível umbilical, muito condescendente, passando por cima de problemas porventura óbvios, é grande. Maior ainda é o risco, pela falta de imparcialidade, de nada contribuir para uma fruição mais produtiva, digamos, do que o leitor tem em mãos. Mas se aceitei na hora um duplo convite relativo a este livro – escrever estas linhas e colaborar com seis poemas – é porque sempre vivenciei o Psiu Poético criticamente, e o evento foi sempre o principal responsável por essa vivência. Nunca me senti obrigado a estar no Psiu, tampouco a pensar, dizer ou percebê-lo por um prisma acrítico, ingênuo. A liberdade de ver foi, desde o início, aspecto constitutivo do “constructo” cultural Psiu Poético. Deixar ver, estimular o oswaldiano “ver com olhos livres”, foi o que intuitivamente deve ter me chamado a atenção ali naquele 1987, 1988, quando tomei conhecimento do Psiu através de Aroldo Pereira, um dos idealizadores e coordenador do evento. O modo como esse conhecimento se processou diz muito sobre o seu teor, sobre a natureza do Psiu Poético: certo dia, andando pelas ruas do centro de uma Montes Claros ainda relativamente calma, creio que entre a Av. Mestra Fininha, mãe do célebre Darcy Ribeiro, e a Prefeitura, encontro, por acaso, Aroldo em plena militância sociocultural. Ele se apresenta; eu, do alto da timidez dos 17 anos, apresento-me; ele solicita-me assinatura num abaixo-assinado em favor de uma causa cultural e me fala do Psiu. Tudo lá era livre – o acesso, a participação, a inscrição etc –, não tinha que pagar nada, não tinha pré-requisito nenhum – e isso, que Aroldo me dizia, soava quase inacreditável: liberdade total? Então, eu certamente intuía, era uma questão de “poiesis”, de criação, de mais-além do lugar comum, algo realmente interessante.






Daqui, do limiar dos 30 anos de realização do evento, que completar-se-ão em outubro de 2016, é possível perceber melhor, com mais clareza, o Psiu Poético e compreendê-lo em sua gravidade, isto é, em sua diferença radical, primordial. Não se trata de mais um evento de promoção da poesia, de mais um encontro de poetas, mas de um estranho movimento social, um movimento poético-social, pode-se dizer. Como tal, trata-se de um movimento de resistência a uma ordem social injusta que é global, evidentemente, e que apenas se atualiza no local, numa cidade – Montes Claros –, numa região – Norte de Minas Gerais.  A liberdade de ver, pensar, fazer, agir, estar, ser é precisamente o modo como o Psiu Poético resiste à resistência que setores conservadores, contrários às liberdades individuais, sobretudo às liberdades individuais dos subalternos, sempre tiveram e continuam a ter em relação ao evento. Ao resistir ao Psiu pela via de diversos dispositivos – indiferença, estigmatização, difamação, negação de apoio, diluição, censura, descaso etc –, esses setores conservadores – universidade, agremiações de letrados, instituições públicas, órgãos de imprensa etc – só fizeram atestar, ao longo dos anos, a periculosidade da liberdade e o horizonte político revolucionário, realmente transformador, da práxis poética. Seria ingênuo, sem dúvida, pensar que esses setores – municipais, inicialmente, mas logo estaduais e hoje até federais – nunca foram sensíveis ao horizonte político das práticas artísticas, bem como das práticas pensantes em geral. Deve-se justamente a essa sensibilidade, desde os tempos tidos e havidos como coloniais, a constante vigilância, o atento controle, dos artistas, críticos, intelectuais, em países como o Brasil, tema aguçado pelo historiador baiano Sacramento Blake já em 1883 e explorado à exaustão nas últimas três décadas por autores como Luiz Costa Lima. A resistência próxima e distante, regional e nacional, ao Psiu Poético explica-se mais em função do caráter revolucionário do seu horizonte político, não simplesmente em função desse horizonte, que é perceptível, às vezes, até em produções artísticas reacionárias, pejorativamente acadêmicas.




Em termos históricos genéricos e específicos, da história social e da história artístico-literária, a resistência ao Psiu Poético explica-se a contento, claro: em 1986, quando o evento surge, estávamos ainda saindo, com todas as conturbações, de uma longa noite ditatorial; e, por outro lado, o que presenciamos nos últimos 30 anos em relação à poesia é a mesma inadequação de valores éticos, morais, culturais, individuais e dinâmica industrial, capitalista, vivenciada pelos primeiros românticos alemães na aurora do século XIX e pelo sem-número de modernistas e vanguardistas ao longo do século XX. Assim, a resistência ao Psiu coloca-se como algo bastante previsível, como uma situação que não poderia ser diferente, situação que, por outro lado, acaba por nos levar a pensar com mais interesse na resistência a essa resistência, nisso que, afinal, tem mantido o evento aceso ao longo de tantos anos sempre com o mesmo formato aberto, democrático, semi-anárquico, já que não totalmente desprovido de referência de poder, de organização, de centro. A ascendência do dado social sobre o dado cultural restrito, “classudo”, burguês, ressalta-se como elemento edificante dessa resistência: a organização do Psiu Poético lida, desde o início, com uma perspectiva de sujeitos sociais, não de sujeitos culturais definidos segundo critérios artísticos administrados pelo “campo cultural”, conforme a linha reflexiva de um Pierre Bourdieu. Não interessa ao Psiu o produto apenas – poema, vídeo, dança, performer, drama etc -, mas o processo produtivo em que se ressalta um “ser social”, digamos pensando agora em Georg Lukács, em que reluz, por isso mesmo, uma consciência cidadã, interessada, antes de mais nada, na relação com outrem, no envolvimento com a cidade, com o tempo presente, com o mundo. Esteve clara já naquele fim de anos 1980, e foi ficando cada mais clara, a perspectiva de inclusão social via poesia praticada pelo Psiu Poético que constitui, no fundo, o seu polêmico alicerce edificante à medida que afronta não apenas conservadores, figuras que não gostam de poesia, mas, sobretudo, cultores do esteticismo censor, defensores intransigentes da arte para nada.




Como uma espécie de desdobramento natural da sua perspectiva social, o Psiu Poético acabou por consolidar, ao longo dos anos, uma ascendência do dado cultural sobre o dado esteticista, não exatamente estético, sobre aquilo que constitui a “ideologia do estético”, no sentido postulado por Terry Eagleton, a série de juízos de valor cultivada pela classe dominante. Assim, o mais importante para o Psiu, desde o início, foi o fazer estético em si, que pressupõe a dedicação de determinado sujeito social a determinada arte, consciente ou inconscientemente, não o valor estético propriamente dito, não a qualidade artística do que se pretende artístico. Vejamos: o mais importante para mostrar no Salão Nacional de Poesia, seja nos painéis na galeria ou nos palcos do Centro Cultural de Montes Claros, referência principal das práticas culturais na cidade, exposição que, por sua vez, não constitui a totalidade de um evento que também conta com atividades nas ruas, praças, Mercado Municipal, bares, escolas e outros espaços públicos. Essa ascendência do cultural sobre o estético na organização das artes – esse gesto apenas aparentemente espontâneo de realizar um evento, mas que contém, claro, uma episteme, uma teoria sobre como se efetiva a prática em questão – tem sua motivação temporal e espacial, responde a inquietações de uma época, os anos 1980, e a necessidades de um local, o sertão norte-mineiro. À medida que o estético perde a hegemonia que tinha nos grandes centros urbanos ocidentais de fins do século XIX até meados dos anos 1960, como parte evidentemente do esgotamento do projeto filosófico da modernidade, a cultura, ao sabor da retórica democratizante do Brasil dos anos 1980, passa a ser referência de unicidade para o campo das artes. Essa referência se revela mais produtiva, na dinâmica do Psiu Poético, pela sua carga de generalidade – tudo é cultura, costuma-se pensar generosamente –, mais fácil de se assimilar numa região historicamente marcada pela informalidade, por manifestações culturais populares, pela oralidade, enfim, elementos que caracterizam o sertão e o colocam na contramão da cultura letrada que reverencia a poesia escrita, o acabamento estético etc.




Finalmente, pensando a episteme, a teoria sobre a prática Psiu Poético que está implícita no que o evento apresenta a cada ano, ainda é possível falar numa ascendência do estético sobre o ideológico como elemento que caracteriza a resistência do Psiu não só à resistência externa, a daqueles que não são do campo das artes, mas também à resistência interna, a daqueles que também são do campo das artes, que também são criadores, críticos, pesquisadores e professores de literatura e outras artes, que resistem ao evento negando-se a reconhecer sua relevância, preferindo vê-lo como um “happening” de vagabundos. Não há, em termos rigorosos, uma negação do estético pelo evento, à medida que este dá vazão aparentemente a um vale tudo, expõe toda uma produção em vários registros – escrito, musical, cênico, performático etc -, sem se importar, aparentemente, com a qualidade dos trabalhos. Negar o estético é impossível à medida que, como Jacques Rancière argumentou mais recentemente a partir de uma revisitação aos antigos e sempre novos gregos, o estético, o sentido de “aisthesis”, diz respeito à esfera do sensível, de tal forma que só um uso interessado, evidentemente ideológico, pode restringir o estético às artes, como se percebe na tradição esteticista. O Psiu Poético vem aguçando há três décadas a esfera do sensível, exibindo o dado estético numa relação conflituosa com o dado esteticista,  apegando-se a linhas de fuga, linguagens desviantes das linhagens hegemônicas na poesia e nas artes em geral, e configurando linhas de força contra-ideológicas. A ideologia, no seu sentido negativo, marxiano, de mascaramento da realidade, tem sido, sem dúvida, o grande alvo da ação social Psiu Poético, em face do qual se explica o sentido político revolucionário, transformador, da própria ação, bem como se explica, claro, parte considerável, pelo menos, das dificuldades para a efetivação dessa ação. Desmascarar, desideologizar, é, no limite, desmascarar-se, revelar a realidade e também revelar-se como parte dessa realidade, que, se não é ideal, justa, deve ser destruída – e daí a crise, a identidade crítica, do Psiu Poético.       




Este livro me parece mais produtivo, mais inquietante, da perspectiva de um “fluxo” do que da perspectiva de um “fixo”, recordando as categorias do grande Milton Santos, mais como um movimento num processo infinito do que como um lugar de chegada, uma conclusão. Não só porque várias outras antologias reunindo poemas de participantes do evento foram editadas pela Catrumano, do poeta Jurandir Barbosa, nos últimos anos, mas porque o registro escrito nunca correspondeu à totalidade do Psiu Poético, apesar de ter sido, e continuar sendo, a parte estruturante do evento. Aqui, como nas demais antologias já publicadas, sentimos, sobretudo, a impossibilidade de apresentação do Psiu em sua integralidade, seu caldeirão de linguagens, que paradoxalmente faz deste livro uma metáfora precisa do que é o evento: algo incontível, transbordante, sertânico, glauberiano, darcyano, riobáldico, mas fundamentalmente pereiriano, vinculado ao fervor criativo de Aroldo Pereira, um poeta “full time”. Não se trata de uma antologia empenhada em legitimar nomes, até porque muitos aqui já estão legitimados, mas antes de uma mostra que visa configurar um desenho, tanto quanto possível, sobre o Psiu Poético, revelando, a partir da pluralidade de linguagens, o traço distintivo, referencial, do Psiu Poético, que é o convívio dos diferentes como diferentes, sem que seja necessário suprimir suas diferenças. Aqui estão alguns nomes ligados ao Psiu desde a origem, como Antonio Wagner Rocha, Marli Fróes, Mirna Mendes, Olívia Ikeda, Karla Celene Campos e Renilson Durães, outros que se ligaram ao evento nos anos 1990 e 2000, como Marlene Bandeira, Márcio Adriano Moraes, Patrícia Giseli, Nicolas Behr e Murilo Antunes, e tantos que, libertos dos preconceitos colonialistas característicos do eixo Rio-SP, têm se ligado ao Psiu nos últimos anos, como Éle Semog, Luís Turiba, Celso Borges, Ronald Augusto, Jairo Fará, Wagner Merije e Ana Elisa Ribeiro. Não se trata aqui, é preciso frisar bem, de uma antologia, tampouco de antologia de melhores poetas do Psiu, e sim de um desenho bastante aproximado do que é o Psiu Poético, viabilizado de forma Psiu – colaborativamente – como parte da comemoração continuada dos 30 anos do evento.




A exemplo do evento Psiu Poético, o todo tem ascendência sobre as partes aqui, do todo, das trinta vozes que ressoam neste livro-salão, e não de cada parte isolada, de cada um dos poetas, decorre a importância do gesto cultural – aquilo que realmente está em causa – em clave livresca. São poetas aproximados a partir de critério que é social antes de ser cultural, que é cultural antes de ser estético e que é estético antes de ser ideológico, configurando, assim, um desenho fidedigno do Psiu motivado, como o evento, pela compreensão da poesia como resistência à ordem social injusta das coisas, na qual a poesia é negada porque seu sentido é, como a política parecia a Hannah Arendt, a liberdade. O modo como cada poeta diz aqui, sua modulação particular dos signos, não é mais significativo que a substância que subjaz a esse dizer, expressa, na verdade, a substância cultivada pelo Psiu Poético ao longo de tantos anos, o ponto de vista segundo o qual “a posição da poesia é oposição”, conforme um dos poemas de Celso Borges constantes deste livro, oposição a uma situação social que não mudou fundamentalmente nos últimos 30 anos e nada nos garante, infelizmente, que mudará tão cedo. Este livro, bem como as demais ações comemorativas do trigésimo ano do Psiu Poético, chega num momento semelhante àquele, no final dos anos 1980, em que Aroldo Pereira e seus companheiros do grupo teatral Transa Poética – Gabriel Cardoso, Mauro Lúcio, Renilson Durães – viram-se premidos a inventar o Psiu Poético, com a finalidade de instaurar um território de produção de liberdade que jamais seria instaurado por autoridades institucionais, políticas ou acadêmicas, em pleno Brasil profundo. Ontem como hoje, a liberdade é uma ameaça aos donos do poder, aos “abutres” denunciados pelo poema de Aroldo Pereira também presente nesta mostra, e apenas os poetas, praticantes de uma política revolucionária, podem produzi-la, cultivá-la, disseminá-la pelo mundo. A produção da liberdade a partir da poesia, com a poesia, tem sido, sem dúvida, a maior contribuição do Psiu Poético à vida contemporânea, processo que este livro, com seus poetas a ver com “olhos livres”, metaforiza.





Este texto é, na íntegra e com o título original, trabalho escrito para figurar como prefácio ao livro Trinta anos-luz (SP, Aquarela brasileira, 2016), organizado por Aroldo Pereira, Luís Turiba e Wagner Merije em homenagem aos 30 anos de realização ininterrupta do Salão Nacional de Poesia Psiu Poético, evento criado e coordenado pelo poeta Aroldo Pereira em Montes Claros, sertão de Minas Gerais. Por falta de espaço, apenas um fragmento, com o título de "Contramão", foi incluído na publicação que teve lançamento no último 10 de junho em BH e será lançada ao longo do ano em várias cidades brasileiras. As imagens, todas extraídas da internet, são: cerrado norte-mineiro, Aroldo Pereira, Luís Turiba, Wagner Merije, Glauber Rocha em redação, Darcy Ribeiro jovem pintado de índio e a poeta e performer sertaneja Patrícia Giseli, pertencente a uma das levas mais recentes de psius.