Compreende-se
facilmente o silêncio da crítica, ou do que ainda existe sob esse nome, em
relação à poesia, especialmente aquela que se apresenta no suporte livro. Não é
fácil pensar o que se mostra em palavras, rimas, ritmos, estrofes, quando temos
plena consciência – ainda que também saibamos se tratar de uma consciência
possível – de que a questão não se esgota nisso que vemos e lemos. Ouro Preto, livro de poemas de Mário
Alex Rosa recentemente publicado pela Scriptum, é exemplo da complexidade da
poesia escrita e enfeixada em livro. Aparentemente, é uma poesia conformada ao
enunciado, que não teria nada a nos dizer para além do que já está dizendo, uma
linguagem que se bastaria a si mesma. Assim, uma leitura ideal dessa poesia
seria aquela imanentista, subordinada ao texto, “close reading”. Mas, para além
da aparência, Ouro Preto é, já a
partir do título, um convite ao desvio do visível, do que se dá a ler, em
função do que, numa experiência lírica muito honesta, que é a desse autor
mineiro, escapa à sistematização, a um pensamento ainda que sensível,
“poético”.
Ouro
Preto nos convida a ultrapassar a exterioridade – uma
cidade – em direção à interioridade, ao sujeito. Nesse movimento – pensado,
obviamente – é que uma voz vai-se distinguindo de outras tantas vozes que
abordaram Ouro Preto – de Cláudio Manuel a Affonso Ávila, passando por Murilo e
Cecília. Não é só o timbre do poeta que é diferente, mas, sobretudo, o “logos”
que subjaz a essa voz, o seu modo de pensar Ouro Preto, que é “sentimental”, no
sentido schilleriano, marcado pelo sentimento da perda, do desligamento, de um
choque, enfim, no plano afetivo. A cidade de Ouro Preto, com seus lugares hoje
catalogados como históricos, é o cenário do objeto dessa perda, que é o amor.
Falar de Ouro Preto, ao longo de todo o livro, significa falar desse amor
perdido, e vice-versa, o que resulta numa conjunção muito fértil – porque
problemática – de elementos públicos e privados. Fértil porque estimula a
criação; problemática porque subordina a criação a um horizonte ideal, que é o
de um amor romântico, um horizonte afim, consequentemente, de uma Ouro Preto
ideal, cultivada por um sujeito que, no limite, passa a ser também idealizado.
À medida que joga com
dados hauridos na experiência, numa relação amorosa, Alex Rosa demonstra que
não é um poeta idealista no sentido forte. Suas cenas de amor se passam na
Ponte de Antônio Dias, na Casa Guignard, na Ponte de Marília, na Praça Tiradentes
etc. Esses dados concretos, reais, não fazem dele um poeta realista, claro, mas
nos levam a lê-lo, no mínimo, como um poeta de “consciência crítica”, para
recordar Affonso Ávila. O procedimento idealista que permeia Ouro Preto, o
pessoano “fingir que é dor”, porta uma intencionalidade, evidentemente (a
consciência se define pela intencionalidade, pensava Husserl, como se sabe),
sobre a qual é preciso refletir. O livro de Alex Rosa se coloca sob o signo do
diálogo, como nos alerta o poema de abertura, com a tradição literária, uma
intenção implícita na recorrência a Ouro Preto, “cidade letrada” (Rama) por
excelência.
Ressoando Gullar,
Drummond, Alphonsus, o poema de abertura, “Cantiga que não responde”, inscreve,
no rastro da pergunta renitente (“Quem poderá dizer”, “Quem poderá responder”,
“Quem salvará a menina”), o desejo de um poeta de que a poesia possa “resolver”
algo na ordem do simbólico que, por sua vez, “ordena”, desde o âmago, o real
socialmente compartilhado, o plano com que lidamos na cotidianidade. Mário Alex
Rosa, não há dúvida, acredita no poder ordenador da poesia, o que se percebe na
cautela com que elabora seus poemas, na vontade inequívoca de manter o controle
do que escreve. Isso explica, em termos conteudísticos, por que a abordagem do
amor perdido nunca descamba para desabafos, nunca resulta nas “baixarias” do
discurso amoroso. O ideal estético, de uma poesia bastante disciplinada,
“limpa”, pensada, prevalece mesmo em face da premência, assentada no
sofrimento, que o sujeito tem de falar de si, de abrir seu “coração”.
Esse ideal estético é
antibarroco ou, se quisermos, defensivo em relação ao barroco, como o poeta
revela em “Diariamente na Ponte de Marília”: “A rima é velha, até mesmo gasta,/
mas volto a ela para dizer que/ não sou homem barroco,/ condição tão vária;
estou oco?/ Estou louco?/ Não explica nada”. Este poema (que não é simples,
que, como tantos do livro, apenas se traveste de simples, é idealmente simples)
é desnecessário para a configuração do perfil antibarroco do poeta. Seu desejo
de ex-plicação – isto é: de dissolução das “plicas”, das dobras que configuram
o barroco, como postula Deleuze -, uma racionalização para-clássica, fundamenta
o gesto poético em Ouro Preto:
ex-plicar um evento amoroso, ex-plicar uma perda, ex-plicar lugares onde se
passou o amor perdido. Poemas como “Notação”, “Exposição”, “Da falsa formação”,
“A arte de Elizabeth Bishop”, “Conversa num café” e “Lendo E. D.” escancaram
esse desejo de ex-plicação por parte do poeta, um desejo de clareza contrário,
à primeira vista, ao barroco.
Todavia, tão – ou mais
– importante do que o poeta diz em “Diariamente na Ponte de Marília”, ou seja,
que não é homem barroco, é o que ele também já está dizendo no rastro da
negação: que ser barroco não é uma questão apenas de significante, de rima, de
superfície, mas também de significado, de substância. Esse poema é falsamente
simples, volto a dizer, porque não se esgota no que diz, no enunciado, na
relação de um sujeito com seu objeto amoroso, porque implica a tradição
literária, porque pensa a partir de um poder ordenador da poesia, no qual o
poeta acredita e acaba por ser um dos complicadores do seu gesto. Assim, diz
ainda o poema em questão: “O vale cedo ou tarde/ invade a tua casa, a tua
cidade./ Não espera Marília passar,/ ela um único pastor/ soube amar”.
Em face
deste desdobramento, que sugere uma intempestividade afim do barroco, pode-se
dizer que, apesar do ideal para-clássico do poeta, o mundo ouropretano visado
se barroquiza, entra em ebulição e contagia o sujeito, colocando-o numa
situação crítica. Daí, no desfecho do poema, lemos: “A minha rima é pobre/ mas
ainda trago feito nobre/ o amor que ora te ofereço/ na desgraça de quem por
pouco/ não se mata./ Mas, se por azar outra vez errar,/ esse diário não será
tarde demais?”. O mais importante neste poema irregular, errado e errante, não
é a questão esteticista, a recusa do
barroco e o intertexto com Gonzaga, mas a sincera impossibilidade, da parte do
sujeito, de não jogar com a própria vida no ato de criação, o que significa
acionar um conjunto de forças que o sujeito não controla totalmente, não
domina, forças que, na realidade, dominam esse sujeito, oprimem-no e o obrigam,
por outro lado, a travar uma dolorosa luta pela emancipação.
Em poemas como “Ouro
Preto”, “Oito de julho” e “Visita”, os mais consistentes do livro, assistimos à
narrativa dessa luta. Não é uma luta circunscrita ao poema, a drumondiana luta
com palavras, mas uma luta pela compreensão do entorno do outro e de si. O que
anima essa luta é o ideal, sem dúvida, da poesia como força ordenadora, mas
esse ideal esbarra sempre nos “muros” da história (“os homens endurecidos/ não
sabem abrir porta”), que se revela uma contraforça desordenadora. No desfecho
de “Visita”, Mário Alex Rosa escreve que “Este poema apenas tangencia/ a falta
que nunca acaba/ o fim de todas as coisas”. Trata-se de uma visita a Ouro
Preto, à história, à tradição literária, ao amor romântico etc. Trata-se de uma
visita movida por um ideal e, ao final, um reconhecimento da frustração desse
ideal. Mas é justamente nesse reconhecimento que se revela o fundamento crítico
da poesia de Ouro Preto que, no nível
do enunciado, não é tão fácil perceber, mas que está ali, para além do dito, na
forma cultivada há tantos anos por esse discreto e comovido poeta.
Editor deste OROBÓ/Kadernu di Ynwenssões, Anelito de Oliveira, ex-editor do Suplemento Literário de Minas Gerais (99/03), criou e editou o jornal Não (94/95) e a revista Orobó (97/99), que voltará a circular em abril próximo impressa e digital. Publicou Lama (2000) e Três festas A love song as Monk (2004) e, depois de quase uma década em silêncio, está lançando, no momento, os primeiros três volumes da série Acontecimentos Criativos - Transtorno, A ocorrência e Mais que o fogo -, pela qual a Orobó Edições www.oroboedicoes.blogspot.com.br começa a organização e difusão de toda a sua produção poética. Contato: anelitodeoliveira@gmail.com, www.anelitodeoliveira.blogspot.com.br, www.facebook.com/anelitodeolivei. As imagens nesta página são da artista Fani Bracher, uma singularidade da arte contemporânea radicada em Ouro Preto, dona de uma linguagem discretamente desviante do visível.