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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Dois poemas de Maria do Sameiro Barroso





OS TEXTOS E AS VOZES



As vozes chegam nulas, plenas, como máscaras
despojadas, mergulhando no abismo
insidioso dos textos;
densos são os espelhos cristalinos da sedução
que os inventa.
Os versos são físicos, orgânicos, verdadeiros,
na sua carne e procura da objectual ambiguidade.
O corpo é mineral e fundo, o sangue, aéreo
e vegetal.
A palavra proscrita instala-se em cada retalho,
como bandeira procriada de onde emerge
com a sua marca imaculada, imaterial.
No lodo e nos charcos citadinos, aspira a criar
num verso, a ferida e o ardor de onde regressa
após ousar tocar a ígnea poção do universo.
Entre nuvens opacas, os seres coabitam, vivem,
construindo muros que a solidão das palavras derruba.
O universo é concêntrico, sedoso como um umbigo
onde circula o sangue e os nutrientes do sol.
A luz é a textura onde confluem discêntricas fracturas.
A disrupção é regra e arte de um manifesto descontínuo
onde as vozes assomam após a descida abissal,
trazendo os olhos raiados pela missão urgente
de cumprir o ímpeto e o corpo no delírio instante
de entrega e submissão.










A VORAGEM DO MUNDO




As palavras sugam-nos como buracos negros
para as auroras puras do mundo,
arrastam cisternas de lodo, sangue deglutido,
narcisos degolados.
Intacta, a massa encefálica flutua entre as nuvens.
As palavras devoram a íntima vertigem
que se afunda com os submarinos negros,
sugados pela voragem insidiosa dos violinos das trevas.
Os passageiros anónimos comprimem-se
numa viagem sem regresso.
Somos nós.
Os nossos rostos há muito que se apagaram
por entre as aves cinzentas onde os esqueletos refulgem.
O sol é a linfa amarela que escapa
por entre as células activas.
O silêncio é ainda uma miragem duradoura,
a vida uma engrenagem dúbia.
Alguém de olhar azul e longo medita.
Procuro as aves entre gruas de ferro,
procuro a relva entre estradas de cimento.
Escuto a canção estridente dos rouxinóis que cantam
sob as cúpulas dementes.
Olho as tílias suaves, as margaridas doces,
as dormideiras celestes.
Dai-me um fruto secreto e eu dormirei
com a noite, dai-me um fruto inteiro,
dai-me uma palavra e eu salvarei o mundo,
dizia alguém, com os olhos vagos
e o tremor incerto,
vindo de outro tempo.





O corpo dói-me, uma visita da poesia,
uma noite de sombras,
um quadro esvaziado de molduras.
Um relâmpago poderia configurar uma abertura,
percorrer os túneis, as farsas,
estancando o sangue onde um enorme coágulo
de silêncio se abriga.
Tenho o corpo dorido, a garganta seca,
a língua ferida, o estômago repleto de venenos,
As metáforas asfixiam.
Outrora, as aves prenunciaram a morte
dos segredos.
Contra as nuvens, as mariposas voavam,
atordoadas.
Nas estepes cósmicas, alguém, num reduto de névoa,
aniquila séculos de obstinadas ilusões.
Numa plena incisão, uma ferida poderia iniciar
o nada, o céu fulgindo, o corpo rodando
no espasmo abandonado à excêntrica pulsão das trevas,
infinitas as mãos, as giestas, as violetas,
e as velhas canções que ainda ardem.




Braga, 30 de Dezembro de 2012












A poeta Maria do Sameiro Barroso é uma das vozes inquietantes da poesia portuguesa neste início de século, autora de nove títulos, entre os quais  Poemas da Noite Incompleta, publicado em 2010 no Brasil pela Escrituras.  Licenciada em Filologia Germânica e em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Lisboa, é também tradutora, pesquisadora, ensaísta e, desde 2011, Vice-Presidente do Pen Clube Português. Em 2009, foi a grande vencedora do Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica com o original Uma Ânfora no Horizonte. O poeta Ángel Guinda prepara uma antologia da sua poesia para a espanhola Editora Olifante, prevista para sair agora em 2013. Os dois poemas aqui publicados são inéditos em papel e na internet, enviados exclusivamente para este Kadernu di Ynwenssões. As imagens são da impressionante Helena Almeida (1934), um ícone das artes plásticas contemporâneas em Portugal.