OS
TEXTOS E AS VOZES
As
vozes chegam nulas, plenas, como máscaras
despojadas,
mergulhando no abismo
insidioso
dos textos;
densos
são os espelhos cristalinos da sedução
que
os inventa.
Os
versos são físicos, orgânicos, verdadeiros,
na
sua carne e procura da objectual ambiguidade.
O
corpo é mineral e fundo, o sangue, aéreo
e
vegetal.
A
palavra proscrita instala-se em cada retalho,
como
bandeira procriada de onde emerge
com
a sua marca imaculada, imaterial.
No
lodo e nos charcos citadinos, aspira a criar
num
verso, a ferida e o ardor de onde regressa
após
ousar tocar a ígnea poção do universo.
Entre
nuvens opacas, os seres coabitam, vivem,
construindo
muros que a solidão das palavras derruba.
O
universo é concêntrico, sedoso como um umbigo
onde
circula o sangue e os nutrientes do sol.
A
luz é a textura onde confluem discêntricas fracturas.
A
disrupção é regra e arte de um manifesto descontínuo
onde
as vozes assomam após a descida abissal,
trazendo
os olhos raiados pela missão urgente
de
cumprir o ímpeto e o corpo no delírio instante
de
entrega e submissão.
A
VORAGEM DO MUNDO
As palavras
sugam-nos como buracos negros
para as auroras
puras do mundo,
arrastam cisternas
de lodo, sangue deglutido,
narcisos degolados.
Intacta, a massa
encefálica flutua entre as nuvens.
As palavras devoram
a íntima vertigem
que se afunda com
os submarinos negros,
sugados pela
voragem insidiosa dos violinos das trevas.
Os passageiros
anónimos comprimem-se
numa viagem sem
regresso.
Somos nós.
Os nossos rostos há
muito que se apagaram
por entre as aves
cinzentas onde os esqueletos refulgem.
O sol é a linfa
amarela que escapa
por entre as
células activas.
O silêncio é ainda
uma miragem duradoura,
a vida uma
engrenagem dúbia.
Alguém de olhar
azul e longo medita.
Procuro as aves
entre gruas de ferro,
procuro a relva
entre estradas de cimento.
Escuto a canção
estridente dos rouxinóis que cantam
sob as cúpulas
dementes.
Olho as tílias
suaves, as margaridas doces,
as dormideiras celestes.
Dai-me um fruto
secreto e eu dormirei
com a noite, dai-me
um fruto inteiro,
dai-me uma palavra
e eu salvarei o mundo,
dizia alguém, com
os olhos vagos
e o tremor incerto,
vindo de outro
tempo.
O corpo dói-me, uma visita da poesia,
uma noite de sombras,
um quadro esvaziado de molduras.
Um relâmpago poderia configurar uma abertura,
percorrer os túneis, as farsas,
estancando o sangue onde um enorme coágulo
de silêncio se abriga.
Tenho o corpo dorido, a garganta seca,
a língua ferida, o estômago repleto de
venenos,
As metáforas asfixiam.
Outrora, as aves prenunciaram a morte
dos segredos.
Contra as nuvens, as mariposas voavam,
atordoadas.
Nas estepes cósmicas, alguém, num reduto de
névoa,
aniquila séculos de obstinadas ilusões.
Numa plena incisão, uma ferida poderia iniciar
o nada, o céu fulgindo, o corpo rodando
no espasmo abandonado à excêntrica pulsão das
trevas,
infinitas as mãos, as giestas, as violetas,
e as velhas canções que ainda ardem.
Braga,
30 de Dezembro de 2012
A
poeta Maria do Sameiro Barroso é uma das vozes inquietantes da poesia
portuguesa neste início de século, autora de nove títulos, entre os quais Poemas
da Noite Incompleta, publicado em 2010 no Brasil pela Escrituras. Licenciada em Filologia Germânica e em
Medicina e Cirurgia pela Universidade de Lisboa, é também tradutora,
pesquisadora, ensaísta e, desde 2011, Vice-Presidente do Pen Clube Português. Em
2009, foi a grande vencedora do Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica com
o original Uma Ânfora no Horizonte. O
poeta Ángel Guinda prepara uma antologia da sua poesia para a espanhola Editora
Olifante, prevista para sair agora em 2013. Os dois poemas aqui publicados são
inéditos em papel e na internet, enviados exclusivamente para este Kadernu di
Ynwenssões. As imagens são da impressionante Helena Almeida (1934), um ícone das artes plásticas contemporâneas em Portugal.