Páginas

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Prazeres roubados / Um conto de Roberto Amaral






No prazo exíguo de uma consulta médica, P. viu os seus maiores prazeres serem roubados de forma impune e covarde pelo diagnóstico de um problema congênito em seu coração.
Vou ter que lhe receitar um betabloqueador, disse o médico, é pra reduzir sua pressão arterial e controlar as alterações de seus batimentos cardíacos.
Quais as implicações do uso desse medicamento, doutor? Perguntou P., com o laconismo dos predestinados.
Bem, você deve evitar ingerir tudo que possa lhe provocar um aumento de sua energia: café, refrigerante, bebidas alcoólicas... Você pode levar uma vida tranquila, sob controle, desde que atente para a utilização diária do medicamento, e para essas orientações, respondeu o médico com enfado profissional.
... e os efeitos colaterais, doutor, existem? Como tendo já absorvido o irremediável, ou seja, a necessidade de usar o remédio, P. lançou essa questão ao cardiologista.
Como qualquer medicamento, esse também pode apresentar efeitos colaterais, embora sejam raros. Pode ser que você apresente tonturas, leves taquicardias, pés e mãos frias... Enfim, reações, como eu disse, leves. Uma coisa que você tem que botar na cabeça é que você terá que tomar esse remédio por tempo indeterminado. Sentenciou o médico com um indisfarçável semblante de quem não contou toda a verdade.
Enquanto se dirigia para a farmácia mais próxima, P. ruminava seus pensamentos, levando na mão direita, semiaberta, a receita médica: Metoprolol – 1 cx. Tomar um comprimido pela manhã ou à noite durante trinta dias. Repetir a indicação a cada mês.
Um problema cardíaco congênito não é um problema hereditário, é um problema que já veio comigo, o meu coração já veio com defeito, eu sou uma máquina que veio ao mundo defeituosa. Bem, isso não é novidade nenhuma, eu já me sabia defeituoso, pelo menos na cabeça, no cérebro, agora sei também que há um parafuso a menos no meu coração. Mas isso de eu não poder tomar café! De não pode ingerir bebida alcoólica, de abrir mão da minha cerveja e do meu vinho! Isso é demais! Tudo pelo medo de morrer, mas isso já não é uma espécie de morte em vida?
Passados alguns meses, e para a surpresa de P., nenhum daqueles supostos efeitos colaterais se manifestaram. Ele tomava os minúsculos comprimidos diariamente, em horários bem estabelecidos e com devoção religiosa. Se, por acaso, um dia ou outro ele se esquecia de ingeri-los na hora certa, era lembrado num susto pelo seu coração defeituoso que, vez em quando, palpitava fora do ritmo. Corria, então, em busca do medicamento e o engolia às pressas, como a querer livrar-se de morrer dali a um minuto.
Mas, diariamente, P. era lembrado do sofrimento da abstinência que lhe fora imposta sem aviso prévio, sem qualquer combinação de um prazo em que ela haveria de começar. Principalmente, quando o aroma de café, que sua esposa coava todas as manhãs, inundava a cozinha e invadia suavemente as frestas da porta do quarto, onde ele, que acordava sempre cedo, estava ainda a se desvencilhar dos derradeiros estertores do sono, assistindo ao noticiário na tv.
Ou, quando o crepúsculo das quartas e sextas-feiras lhe apanhavam em atávica nostalgia, e lhe dirigia com uma alegria contida à mesa do bar em que ele pediria uma cerveja, em dias de calor, ou uma taça de vinho em dias de frio, e sorveria o primeiro longo gole com olhos fechados, sentindo o álcool, mimetizado no líquido que o inundava, a preencher os vazios de seu cérebro com um doce e ansiado entorpecimento.
Mas, como diz o dito popular, desgraça pouca é bobagem, P. precisou somar mais uma abstinência compulsória ao seu rol de desprazeres.





Ele já estava estranhando uma involução corriqueira em seu desempenho sexual. A princípio, não se preocupou, Ora esse tipo de coisa acontece nas melhores famílias. Devo estar ansioso por conta do acúmulo de trabalho, e de fato, nos últimos meses tenho andado mesmo assoberbado, e faz tempo que não me distraio com outras coisas, com que a esposa concordou, numa antecipação conformada de um gozo adiado.
Cada um virou para seu lado da cama, ela numa terna entrega ao sono, ele, insone, a enumerar quantas vezes esse fracasso havia se repetido. Percebeu, então, que já foram umas vezes consideráveis, e, quando deu certo, lembrou-se de que seu pau funcionou assim, tipo “meia-bomba”.
É, isso, não tá certo. Amanhã vou marcar uma consulta pra ver o que está acontecendo comigo. E dormiu, depois de algum tempo, a pensar em xoxotas e boquetes, como a mentalizar para seu próprio pau que, muito antes que ele, já dormia enrugado sobre os travesseiros de seu saco.
Olha, o resultado de seus exames está absolutamente normal. Olhe aqui, a sua testosterona está 191, para valores de referência para homens entre 175 a 781, normalíssimo! Esclareceu o urologista para um P. perplexo.
Mas a que devemos atribuir, então, doutor, a minha infeliz performance sexual? Perguntou um P. desolado.
Ora, certamente, por outros fatores, e não aos seus hormônios. Pode ser por uma questão meramente psicológica, ansiedade, excesso de trabalho... Qualquer coisa desse tipo pode influenciar no desempenho sexual. Você não deve se preocupar com isso, pode ser uma fase. Tem também a idade, você já está com mais de quarenta e cinco anos. Em muitos homens, a partir dessa idade, isso começa a ser um acontecimento normal. Recomendo-lhe que saia com a sua esposa, passeiem, viajem, namorem, curtam mais momentos a sós. Isso ajuda muito.
P. saiu do consultório se sentindo um homem absolutamente normal, dada as repetidas vezes em que o médico disse que isso que acontecia com ele era normalíssimo. Sim, normal, sou um homem normal, mas que não levanta o pau, pensou P., um patético poeta puto.
Mas o que acontecia afinal? Eu não era assim, caramba! Isso não tá certo. Primeiro o café, a cerveja, o vinho, e agora isso, não posso mais transar! Assim se angustiava P. sem saber o que pensar. Lembrou-se, então, de um romance que lera há alguns meses atrás, O avesso da vida, do Philip Roth, em que havia o relato de um caso algo parecido. Correu à estante e catou o livro onde leu logo no primeiro capítulo:
Assim que o médico descobriu no check-up de rotina uma anormalidade no eletro (e depois que a cateterização coronária no hospital revelou as dimensões da doença), Henry, começou a ser medicado com bons resultados; podia trabalhar e continuar vivendo uma vida normal, como antes. Nem mesmo se queixava das dores no peito ou falta de ar que seria de se esperar num paciente com obstrução arterial avançada. Não tinha sintomas antes do exame que revelou a anormalidade, e assim permaneceu durante o ano em que antecedeu sua decisão de operar – sem sintomas, à exceção de um único terrível efeito colateral causado pela mesma medicação que estabilizava seu estado e reduziu substancialmente o risco de um ataque do coração.
O problema surgiu duas semanas depois que começou o tratamento. – Já ouvi isso mil vezes – o cardiologista disse quando Henry telefonou para contar o que estava passando com ele.
O cardiologista, assim como Henry um profissional bem-sucedido e ativo, que não tinha ainda entrando na casa dos quarenta, não poderia ter sido mais compreensivo. Ia tentar reduzir a dose até um nível em que o remédio, um bloqueador-beta, continuasse controlando a moléstia coronária e reduzindo a hipertensão, mas não interferisse com as funções sexuais de Henry. Fazendo uma sintonia fina do medicamento, ele disse, às vezes se chegava a um meio-termo.
Experimentaram seis meses, primeiro com a dosagem e, quando isso não funcionou, com remédios de outros laboratórios, mas nada: ele não acordava mais com sua ereção matinal, não tinha mais potência suficiente para relações sexuais com a mulher, Carol
P. interrompeu a leitura e, baixando o livro no colo com o olhar distante, porém disparatado, como o de alguém que se defronta com uma grande descoberta, pensou em voz alta, Caramba! É isso, porra! Quer ver só?! Largou o livro sobre a poltrona e correu em direção à cozinha. Abriu atabalhoadamente o armário de remédios em busca da caixa de Metropolol, buscando nela a bula do medicamento, em que leu, num misto de tristeza e desespero, que algumas reações adversas raras por ele provocadas são nervosismo, ansiedade e impotência/disfunção sexual.
Sem tirar os olhos da bula, P. caminhou lentamente em direção a sala, sentou-se no sofá, repetindo em sussurro reações raras... impotência e disfunção sexual... reações raras... impotência e disfunção sexual... reações raras... impotência e disfunção sexual...
Trata-se disso, então, é o remédio, caramba, o que eu preciso tomar por tempo indeterminado, provavelmente por toda a vida, é isso, então, o avesso da vida, nem café, nem cerveja, nem vinho, nem buceta, prazer nenhum, bom para quem, como eu, um tosco platônico, o que importa é o espírito, não? Ha ha ha ha, é isso, então, não posso mais, prazer nenhum, nenhum! Não mais, é isso, ah ah ah ah... Sim, tudo bem, não posso mais sentir prazer, tudo bem, mas e o desejo? Como anulá-lo também? Como inutilizá-lo qual meu murcho pau? Eis a dor maior: morrer de sede diante da fonte a jorrar farta água! Uma máquina que veio ao mundo com defeito! Uma máquina com defeito!
Quando P. acalmou-se, ou melhor, quando ficou exausto de tanto pensar, de tanto se maldizer, de ter pena de si mesmo, pensou que a sua situação não estava de todo perdida, ele ainda podia desfrutar de dois grandes prazeres: o de comer, que engorda o animal e o de ler, que atordoa o homem.





ROBERTO AMARAL é romancista, contista, ensaísta e professor na UFVJM em Diamantina (MG). Autor de Paul Ricoeur e as faces da ideologia (ensaio, Editora da UFG, 2008) e Le mot juste (romance, Orobó Edições, 2011). Escreve na Coluna O mal-entendido universal da "Germina – Literatura e Arte" e é editor da "Palávoraz – Literatura e Afins". A imagem é um autorretrato do realista francês Gustave Courbet (1819-1877).