SEQÜÊNCIA 0
INT/NOITE
– Biblioteca. Casa em Curitiba. Anos ’80.
Cena alfa
De cócoras sobre roto tatame, um homem de
seus 40 anos, vestido de judoca (quimono ornamentado com hai-kais de Issa Bashô
Alice Ruiz) medita – olhos de peixe fisgado, tez e nez de polonais mestiço, juba africana.
Numa
das mãos, copo de cerveja sem espuma; noutra, caixa de fósforos com mirra
enfiada no miolo do tampo; de uma das extremidades às vezes ele aspira vapor
como se de um narguilé rimbaudiano fora.
Articuladas
à sua concentração outras figuras sorrateiramente intrometem-se na ação
tentando protagonizá-la.
No chão espelhado de tagarelas tatuagens de
antanho, ideogramas à Eisenstein esganando o diktat, iluminuras cristãs soturnas como sói – dedo em risco.
Do alto tenda de sangue pólvora suor
essência de cona, cerca viva de esperma, e relva da juventude, se movem
brilhosos – réptil de pesadelo.
Atados a prego máscaras de poetas
zombeteiros impacientes com os deuses, epítetos enclausurados no mote, mulheres
pudendas e os inimigos idos e vindos – além dos penetras de praxe augurando
agouro.
No ambiente turbante zombies mal disfarçados e demos largados.
A fúria dos acordes zen-haitec de Ryuichi Sakamoto corroem a cerimônia-transe do
magnífico samurai das araucárias.
Papiros vasculhados, suspense de fonemas,
livros pirogravados de Mishima, Rosa, Propp, Malone, Beckett, Petrônio, Fante.
Na cabeceira do rio Liffey da linguagem,
catatau de poemas rimagens do inédito, hieróglifos e gravetos semânticos inda
sem pai nem mãe.
O rock
de Cruz e Souza: carma áureo.
Trotzky
Borges Pound Cristo – cantos crípticos.
Lennon e as chagas que exorcizam utopias baleadas
pelas costas.
A estrela-menina da terra sem males lê a
estrofe dependurada no ilustre caraíba: uma biblioteca de Alexandria a salvo
da fagueira Curitiba.
Tão rápido quanto as fugas ao léu para
redecorar as narinas e ouvir o vento dos sonhos níveos, ele posta-se hirsuto no
centro da sala – azado para o combate invisível e inviável.
A mais terrena das solidões acode às suas
pupilas mas finge êxtase mastigando a gelatina das bochechas.
Os lábios singram palavras mudas e amuadas
– estridentes.
Suave e felino põe-se movies, la terra trema.
Sobre círculos mínimos, como uma cantárida
mutilada, dá sobre-passos de goleiro, arca os braços do pênalti – sequer há
flechas ou alvos.
Há golpes e goles, golfadas e estocadas.
O punho estala: aos poucos maré alta de
músculos veias nervos em ponto de bala, nosso herói começa a levitar, os artelhos
sujos da noite balouçam, mortalmente, nonados.
O aguerrido warrior de súbito aderna, cambaleia, a carcaça ameaça tombar.
E como que assoprado por algum duende
impensado vê sua vontade aloprar – energia centrípeta, incoercível, incontornável,
ininputável.
Galinha sem cabeça, pomba-asteróide.
O bigode-Rasputin perde o prumo – não o
rumo.
No entanto, tudo é sonrisas.
Maior o redemoinho do corpanzil maior o
rumor da carne e d’alma – uma alegria do primevo arreganho fetal.
Fora do self,
prisioneiro de atávica lumière, ele
agora é uma velocíssima e formidável adaga – multicolor multifacética
multiprofética.
Existência e tenência – uma coisa só.
Urdiduras do verbo e os interstícios do
signo.
Infância e maturidade desossadas.
Desejos e o que nem chegou a vingar.
Vícios e versos – meros anelos.
Numa fusão lenta misto de véu e céu um bem
temperado feixe holográfico entumesce a tela.
Ectoplasmando recorrentes casulos de
angústias medos dores fictícias, o nosso personagem emite um belo berro de puro
gozo.
FIM
Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor.
Autor de trinta e oito filmes (doze longas-metragens), em 1986 teve publicado o
seu primeiro livro de poemas, “O Caderno Erótico de Sylvio Back” (Tipografia do
Fundo de Ouro Preto, Minas Gerais). Depois vieram "Moedas de Luz" (Max Limonad, São
Paulo, 1988); "A Vinha do Desejo" (Geração Editorial, SP, 1994);
"Yndio do Brasil" (Poemas de Filme) (Nonada, MG, 1995), "boudoir" (Sette Letras, Rio de
Janeiro, 1999); “Eurus” (7Letras, RJ, 2004); "Traduzir é poetar às
avessas" (Langston Hughes traduzido) (Memorial da América Latina, SP,
2005); "Eurus" bilíngüe (português-inglês) (Ibis Libris, RJ, 2006); e
“As mulheres gozam pelo ouvido” (Demônio Negro, SP, 2007). Back tem igualmente
editados livros de contos, ensaios, dez roteiros de seus filmes. "Leminskino" é um dos textos do novo livro de Sylvio Back, intitulado Kinopoems, que será publicado pela Orobó Edições (www.oroboedicoes.blogspot.com.br) este ano.