Zunido
na
carcaça da noite me desespero,
ardo em febre, ansiedade e medo.
de pés
virados no leito, ao relento,
sou
engolido pela angústia do tempo.
penso na
velha Iaiá, rezadeira morta,
e um sussurro atravessa a porta
do meu esconderijo de sombras.
como se
falasse por um cazumbi,
uma voz, caindo-me sobre os ombros,
expele a cólera de um bicho: e daí?
reviro-me
nas camadas do sono,
meus olhos se dilatam em espanto.
choro,
como em esquecidos outonos,
uma dor
pronunciada em esperanto.
a agonia
se instala nos cômodos da casa
e desmaio
no poço de um mito raso.
que morto
é esse que me abraça,
quando se
revela um absurdo zunir?
uma mosca
sem mãe cospe no vaso
o ruído
sujo, bizarro — e daí?
a desdita da noite se estende,
aves de
mau agouro desatam o canto.
desalumiado,
um silêncio geme
e a
lágrima desaba em contracanto.
como se o
sonho morresse de pranto
por uma
cruel adaga que nos abre aqui:
o inseto
do nojo zune na fresta — e daí?
Vogais
[a]
alma-de-gato
em flutuação no açude das bocas e na ferrugem do amor fora do ninho.
[e]
estrelinha-do-norte
com espeto de delicadeza nos ecos dos uí-puís escondidos
nas sobrancelhas brancas da árvore de fonemas virgens.
[i]
inhambu-relógio
atrasada para o anúncio da noite em que o desenho do sorriso da índia ainda se
guardava numa flor de jenipapo.
[o]
olho-falso
de uma sabiá-de-óculos choradeira de ontens no trincado amarelo de anéis dentro
do ouvido sem espanto.
[u]
uru-de-topete
derramador de flautas de bambu na libélula das orelhas despertas às funduras
nascentes da noite urutauzada de utopia.
O meu cavalo cego
Para
José Inácio Vieira de Melo
o
meu cavalo cego corre louco,
opera
o passo em rumos inventados.
galopa
célere nas mãos de Borges,
será
ele Homero reencarnado?
o
meu cavalo louco corre cego,
é
um rei de vidro qual Charles VI.
descabeçou
a orelha como Van Gogh,
só
come capim em ano bissexto.
o
meu cavalo de palha-quixote,
negro
como o peixe tamboatá,
canta
com a voz densa de um capote,
— Aderaldo,
nesta hora, onde andará?
o
meu cavalo - cego louco e morto -
renasce
luz no corpo do poema.
Poeta, professor e ativista cultural Carvalho Junior é um dos mais férteis autores da cena poética atual no Brasil, com intensa atuação por toda parte, tanto em ambientes físicos como presenciais. Nasceu e vive em Caxias, no Maranhão de Sousândrade e Ferreira Gullar, de onde dissemina produções admiráveis, como a revista online Quatetê e o grupo de WhatsApp O arco e a lira, canais sérios de difusão de criações e conversas inteligentes. Publicou, entre outras várias coletâneas de versos, Mulheres de Carvalho (São Luís, Café & Lápis, 2011), A Rua do Sol e da Lua
(São Paulo, Scortecci, 2013) e Dança dos
dísticos (Editora Patuá, São Paulo, 2014). Organizou antologias da produção poética recente, como Babaçu Lâmina: 39 poemas (São Paulo, Patuá, 2019) e Antologia de Poetas Locais Integrantes da Noite Universal (E-book, 2019, em parceria com Ricardo
Leão). Os poemas aqui publicados integram o inédito em vias de publicação impressa Xilogravura de pássaros. As imagens são reproduções de xilogravuras de Tita do Rêgo Silva, singular artista maranhense nascida em Caxias e radicada desde 1988 na Alemanha.