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sábado, 30 de janeiro de 2021

Três poemas de Carvalho Júnior

 




Zunido

 


na carcaça da noite me desespero,
ardo em febre, ansiedade e medo.

de pés virados no leito, ao relento,

sou engolido pela angústia do tempo.

penso na velha Iaiá, rezadeira morta,
e um sussurro atravessa a porta
do meu esconderijo de sombras.

como se falasse por um cazumbi,
uma voz, caindo-me sobre os ombros,
expele a cólera de um bicho: e daí?

reviro-me nas camadas do sono,
meus olhos se dilatam em espanto.

choro, como em esquecidos outonos,

uma dor pronunciada em esperanto.

a agonia se instala nos cômodos da casa

e desmaio no poço de um mito raso.

que morto é esse que me abraça,

quando se revela um absurdo zunir?

uma mosca sem mãe cospe no vaso

o ruído sujo, bizarro — e daí?

 

a desdita da noite se estende,

aves de mau agouro desatam o canto.

desalumiado, um silêncio geme

e a lágrima desaba em contracanto.

como se o sonho morresse de pranto

por uma cruel adaga que nos abre aqui:

o inseto do nojo zune na fresta — e daí?

 



 






Vogais



 

[a]

alma-de-gato em flutuação no açude das bocas e na ferrugem do amor fora do ninho.

 

[e]

estrelinha-do-norte com espeto de delicadeza nos ecos dos uí-puís escondidos nas sobrancelhas brancas da árvore de fonemas virgens.

 

[i]

inhambu-relógio atrasada para o anúncio da noite em que o desenho do sorriso da índia ainda se guardava numa flor de jenipapo.

 

[o]

olho-falso de uma sabiá-de-óculos choradeira de ontens no trincado amarelo de anéis dentro do ouvido sem espanto.

 

[u]

uru-de-topete derramador de flautas de bambu na libélula das orelhas despertas às funduras nascentes da noite urutauzada de utopia. 

 









O meu cavalo cego



Para José Inácio Vieira de Melo

 


o meu cavalo cego corre louco,

opera o passo em rumos inventados.

galopa célere nas mãos de Borges,

será ele Homero reencarnado?

 

o meu cavalo louco corre cego,

é um rei de vidro qual Charles VI.

descabeçou a orelha como Van Gogh,

só come capim em ano bissexto. 

 

o meu cavalo de palha-quixote,

negro como o peixe tamboatá,

canta com a voz densa de um capote,

Aderaldo, nesta hora, onde andará?

 

o meu cavalo - cego louco e morto -

renasce luz no corpo do poema.

 

 

 




 


 

 


Poeta, professor e ativista cultural Carvalho Junior é um dos mais férteis autores da cena poética atual no Brasil, com intensa atuação por toda parte, tanto em ambientes físicos como presenciais. Nasceu e vive em Caxias, no  Maranhão de Sousândrade e Ferreira Gullar, de onde dissemina produções admiráveis, como a revista online Quatetê e o grupo de WhatsApp O arco e a lira, canais  sérios de difusão de criações e conversas inteligentes. Publicou, entre outras várias coletâneas de versos, Mulheres de Carvalho (São Luís, Café & Lápis, 2011), A Rua do Sol e da Lua (São Paulo, Scortecci, 2013) e Dança dos dísticos (Editora Patuá, São Paulo, 2014). Organizou antologias da produção poética recente, como Babaçu Lâmina: 39 poemas (São Paulo, Patuá,  2019) e Antologia de Poetas Locais Integrantes da Noite Universal (E-book, 2019, em parceria com Ricardo Leão). Os poemas aqui publicados  integram o  inédito em vias de publicação impressa Xilogravura de pássaros. As imagens são reproduções de xilogravuras de Tita do Rêgo Silva, singular artista maranhense nascida em Caxias e radicada desde 1988 na Alemanha.