Os movimentos da Medusa
KATYA QUEIROZ ALENCAR
No centenário de nascimento de Clarice Lispector, comemorado no último 10 de dezembro, a nossa homenagem se dá aqui na forma de um comentário ao movimento estético-literário de uma das mais intricadas obras dessa esfinge da literatura brasileira, a novela Água viva, classificada pela própria autora e também pela maioria dos críticos apenas como um livro de ficção. Nem pintura nem escrita, mas escrita-pintura, ou vice-versa.
A obra, publicada pela primeira vez em agosto de 1973, configurou-se depois de muitas revisões feitas pela escritora. Alexandrino E. Severino, no artigo “As duas versões de Água viva” (1989, p. 115-118), divulgado pela revista Remate de Males, afirma que inicialmente a obra foi intitulada “Atrás do pensamento: monólogo com a vida” e possuía na época quase 280 páginas. Depois, teve o título substituído por “Objeto” e, em seguida, por “Objeto gritante”. Depois de um ano, Lispector aprimorou ainda mais o texto, diminuindo o “Objeto gritante” de 150 para 100 páginas e lhe dando um novo título: “Água viva”.
Nessa ficção clariciana, a linearidade das ações no enredo é sincopada por inúmeros elementos metaficcionais e autoficcionais. A protagonista exerce, além da função de narradora, a de personagem-pintora e também autora-personagem. Em ambas as funções, promove um jogo dialógico com um Outro (“tu”) externo e diferente. Trata-se de um “Tu-eu” em diálogo-monólogo consigo mesmo, ou seja, um “eu” em intersubjetividade com um “tu”, que é, por conseguinte, o “Outro” desse “eu-narrador” tal qual no mito [1] grego de Narciso - o sujeito que contempla o seu próprio reflexo no espelho d’agua.
Água viva foi o
sétimo livro em prosa de Clarice
Lispector, edição lançada pela editora Arte Nova e, conforme Severino (1989, p.
115), tanto essa edição quanto o seu protótipo fundamentaram-se na busca pela palavra
como tentativa de contato entre o cognoscível e o inefável "it" [2]. Esse termo, usado pela
narradora de Água viva, está ligado à
ideia de “mistério do impessoal” ou de “A transcendência em mim [...]”
(Lispector, 1998, p. 19). A narradora diz que esse termo é “duro como uma
pedra seixo” ou “mole e tem o pensamento que uma ostra tem” e conclui: “O it
vivo é o Deus” (Lispector, 1998, p. 19).
Desde o ano de 1943, com a
publicação de seu primeiro romance no Brasil, Perto do coração selvagem, Clarice Lispector passou a ser
referência no cânone nacional. A estreia de Lispector, na década de 1940, foi
marcada por uma proposta inovadora de experimentação estética na prosa, uma
tendência literária que viria a se consolidar no Brasil somente a partir da
década de 1950. Apesar de didaticamente pertencer à terceira geração de
modernistas brasileiros, a escrita de Lispector, especialmente em Água viva, apresenta-se com tamanha fluidez
e peculiaridade que pode ser revisitada e analisada a partir de múltiplas
perspectivas crítico-teóricas, inclusive as mais recorrentes nos estudos
contemporâneos.
O termo “Água-viva”, no campo da Zoologia, nomeia um ser marinho, porém escrito com hífen, designando um animal aquático, translúcido, em forma de guarda-chuva, possuidor de tentáculos cobertos por células urticantes e causadoras de reações alérgicas a qualquer corpo estranho que o toque. Ao associar-se a imagem da água-viva animal com a Água viva (sem hífen) de Lispector, é possível perceber nesse livro, metaforicamente, uma característica da própria literatura praticada pela autora de Perto do coração selvagem.
A palavra “água” – substância química (H2O) que tem por
propriedade a liquidez , o aspecto incolor, insípido e inodoro; essencial para a vida da
maior parte dos organismos vivos; e, ainda, importante solvente para muitas
outras substâncias – agrega-se ao adjetivo “viva” que, comumente, pode ser
associado a tudo que é animado ou está em movimento dinâmico. A junção
dessas duas palavras, como título do livro, permite a seguinte dedução: a água,
mesmo sendo insípida, é solvente e dinâmica, assim como a vida e a própria
escrita literária de Lispector.
Concomitantemente, a metáfora da ambígua imagem da Medusa, análoga à literatura em Água viva, tanto pode ser percebida como um animal marinho a se locomover pela liquidez das escritas do mundo quanto, tragicamente, como a medusa mito[3], seduzindo o leitor para uma impactante, petrificante e também urticante sensação de estranhamento, já que especula, ficcionalmente, os mistérios em torno da linguagem, da vida e do ser.
O leitor de Água viva, assim como Perseu no mito da Medusa, se almejar vencer a escrita dessa ficção clariciana, deve olhar o texto pelas lacunas do “não dito”, pelas ambiguidades presentes, assim como pelo contínuo no descontínuo (espelho indireto), a fim de conseguir superar o inicial estranhamento e apreender o que está por trás do pensamento clariciano, da superfície dessa ficção.
Ao mergulhar nas águas da escrita de Lispector, o
leitor precisa considerar a imprevisibilidade de um tipo de “texto-instalação”[4], cujo requisito de leitura
é a sensorialidade do corpo reconfigurado plasticamente pela escritura. Ao
contrário do que parece à primeira leitura, Água
viva não é um texto enfadonho, mas glamoroso, justamente pelas suas
singularidades e ambiguidades, ora pintura ora escrita, ora musa ora medusa,
ora espacialidade gráfica ora temporalidade pictórica. Como afirmado pela
própria narradora, Água viva é “um
ovo quente” que queima e, por isso, é uma obra que não pode ser definida e
categorizada, pois nasceu para ser mutável, já que é um texto que passa de mão
em mão, como se trouxesse uma escrita urticante.
Além dessas características, a ficção evidencia nessa narrativa a metáfora do cavalo, alusiva ao ato mesmo de narração. A escrita, como diz a narradora, galopa tal qual um cavalo fogoso, nobre e alegre: “ Mas não sei como captar o que acontece já senão vivendo cada coisa que agora e já me ocorra e não importa o quê. Deixo o cavalo livre correr fogoso de pura alegria nobre.” (Lispector, 1998, p. 50).
Benedito
Nunes (1995, p. 158-159), ao
analisar Água viva,
afirma que não se trata de um recado de ideia, muito menos uma
confissão. É um texto que almeja transformar-se em uma gestualística sonora, já
que o que é mostrado está no não dito, decantado nas entrelinhas: sentimentos,
busca pelo âmago de tudo, expressão do halo dos objetos, exercício dos limites
da experiência verbal, que não se isenta de palavras. A perspectiva pessoal,
presente nesse texto clariciano, para o crítico, ao transbordar no impessoal,
gera um modo de escrever agônico como efeito.
Da ausência de história fica, ainda conforme o crítico paraense, somente a resistência patética e dramática da busca de conexão entre o orgânico e o espiritual, entre a vida e a morte.
Em relação à metáfora do cavalo, Ítalo Calvino a associa ao ritmo escritural, afirmando que provavelmente foi Galileu Galilei [5] quem primeiro usou essa metáfora para designar a velocidade da mente. Isso porque, para Galileu, o ato de discorrer (discurso) era similar ao de correr, associando-se a velocidade física à velocidade mental: “a rapidez, a agilidade do raciocínio, a economia de argumento, mas igualmente a fantasia dos exemplos são para Galileu qualidades decisivas do bem pensar” (Calvino, 1991, p. 56).
Todavia, a velocidade mental não pode ser medida e nem comparada, pois vale
por si mesma. Logo, “a função da literatura é a comunicação entre o que é
diverso pelo fato de ser diverso, não embotando, mas antes exaltando a
diferença, segundo a vocação da própria linguagem” (Calvino, 1991, p. 58). A
rapidez de estilo e de pensamento quer dizer, antes de tudo, agilidade,
mobilidade, desenvoltura, qualidades essas que são combinadas com uma escrita
que tende às divagações saltitantes de um assunto para outro. Isso, ainda segundo o autor das Seis propostas para o próximo milênio, faz com que o narrador perca o fio do relato para reencontrá-lo ao fim de
inumeráveis circuitos de palavras.
A escrita de Água viva se movimenta oscilando entre a poesia e a prosa, em um ritmo singular de propulsão literária, ou seja, a partir de instantes epifânicos da narradora que dão impulso à narrativa. Mesmo discorrendo como um cavalo fogoso, numa recorrência ao chamado "fluxo de consciência" [6] , a narrativa apresenta outro movimento que pode ser associado ao da medusa animal, cujo impulso para frente exige um retroceder para trás, promovendo um intercâmbio entre dois ou mais corpos de escrita.
Nesse sentido, velhas escritas entram em atrito esteticamente
com novas escritas na obra. O ritmo é ascendente e descendente, revelando momentos de explosões figurativas da vida, evidenciando pontos longínquos de
espaço e de tempo limitado e também ilimitado, em que se apresenta recolhimento introspectivo e silencioso (morte simbólica) de quem narra.
Como a narradora afirma, ela sabe histórias antigas que se renovam sob sua pena e, metaforicamente, fala sobre isso:
Sei história passada mas que se renova já. O ele contou-me que morou durante algum tempo com parte de sua família que vivia em pequena aldeia em um vale dos altos Pirineus nevados. No inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas até a aldeia a farejar presa. Todos os habitantes se trancavam atentos em casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e cães e cabras, o calor humano e calor animal – todos alertamente a ouvir o arranhar das garras dos lobos nas portas cerradas. A escutar. A escutar. Estou melancólica. É de manhã. Mas conheço o segredo das manhãs puras. E descanso na melancolia. (Lispector, 1998, p. 35).
Esse ritmo que alterna a narrativa com a introspecção é consolidado por uma ficcionalização corporal e orgânica da vida sensorializada (bíos), sem nenhuma pretensão inicial a ser verossímil. Como um mar revoltoso, o texto de Lispector revolve a areia decantada, fazendo com que traços do gênero lírico dialoguem com o dramático, sem um limite rígido, pois, como afirma Calvino: “Escrever prosa em nada difere em escrever poesia, em ambos os casos trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável” (Calvino, 1991, p. 61).
Em Água viva, simula-se que qualquer forma pode ser viva, pois há objetos estáticos que são animados por significados poéticos na obra. Ao pintar um tema, como afirma a narradora, um objeto é criado. Nota-se que a expressão descritiva desse objeto tem um ritmo, um modo sensorial. Como exemplo, vemos o tratamento do objeto guarda-roupa repetidas vezes:
Mas eu também quero pintar um tema, quero criar um objeto. E esse objeto será – um guarda-roupa, pois que há de mais concreto? Tenho que estudar o guarda-roupa antes de pintá-lo. Que vejo? Vejo que o guarda-roupa parece penetrável porque tem uma porta. Mas ao abri-la vê-se que se adiou o penetrar: pois por dentro é também uma superfície de madeira, como uma porta fechada. Função do guarda-roupa: conservar no escuro os travestis. Natureza: a inviolabilidade das coisas. Relação com pessoas: a gente se olha ao espelho da parte de dentro de sua porta, a gente se olha sempre em luz inconveniente porque o guarda-roupa nunca está em lugar adequado: desajeitado, fica de pé onde couber, sempre descomunal, corcunda, tímido e desastrado, sem saber como ser mais discreto, pois tem presença demais. Guarda-roupa é enorme, intruso, triste, bondoso. (Lispector, 1998, p. 58).
O guarda-roupa, matéria-prima apreendida pelo olhar da narradora, é modelado pela sensibilidade clariciana. A narradora insere o objeto em seu "fluxo de consciência", atribuindo-lhe funções e qualidades inerentes ao humano, possivelmente como tentativa de humanizar a coisa. O inanimado é chamado para o animado, personificado por características comuns ao humano, como intruso, triste, bondoso. Muitas passagens da obra repetem esse procedimento em Água viva:
E o tigre? Não se pode agradecer. Então eu dou umas voltas vagarosas em frente à pessoa e hesito. Lambo uma das patas e depois, como não é a palavra que tem então importância, afasto-me silenciosamente. (Lispector, 1998, p. 61).
Quanto à suculenta flor de cactus, é grande e cheirosa e de cor brilhante. É a vingança sumarenta que faz a planta desértica. É o esplendor nascendo da esterilidade despótica. (Lispector, 1998, p. 41).
Lispector é
econômica com as palavras e frases, suas imagens não se apresentam
em cadência de sinuosidade e harmonia, mas, ao contrário, o compasso do
texto é agressivo e sincopado pelas justaposições e multiplicidades de figuras
do mundo que agregadas em tumulto num só lugar. A maioria dessas imagens é
reconfigurada na ficção, passando a adquirir sentidos de vagueza abrupta e
dramática, sensorializadas e subjetivadas pelo “eu” narrador. Percebe-se
nessa circularidade estética a ambiguidade e a dramaticidade, bem como uma
aliança paradoxal entre a precisão (modo como a narradora capta e descreve as
sutilezas dos detalhes dos instantes do mundo) e a indeterminação como esses instantes
repercutem na subjetividade da narradora.
Calvino (1991, p. 72-75), ao falar sobre a
virtude da exatidão como um dos elementos importantes a serem conservados pela prática literária, defende que muitas vezes o vago é o que é mais preciso, ou seja, é
possível colher a sensação mais sutil com olhos, ouvidos e mãos prontas e
seguras. Para ele, “a procura do indeterminado se transforma em
observação da multiplicidade, do fervilhar, da pulverulência”. A exatidão se revela à medida que o autor diz o mínimo possível, mas também à medida que emenda palavras e frases a fim de minimizar razões de insatisfação no uso que faz das palavras na construção do texto. É importante que não se extinga “toda a centelha que crepite no encontro
das palavras com novas circunstâncias [...]. A literatura – quero dizer, aquela
que responde a essas exigências – é a Terra Prometida em que a linguagem se
torna aquilo que na verdade deveria ser” (Calvino, 1991, p. 72).
Em Água viva, o efeito da entropia do dito e do não dito, num movimento oscilante entre o olho que vê e o espírito que registra poeticamente, acaba por gerar desarticulações sintáticas e figurativas, ameaçando, algumas vezes, as zonas de ordem lógica, já que da expressão figurativa passa-se para o nível da abstração e alegoria. Todo esse compasso de transversalidade de temáticas e formas leva o texto clariciano a se comportar como uma estranha literatura, densa e ao mesmo tempo translúcida, tal qual a medusa animal que, por propulsão, avança para as águas do mundo, mas também – e ao mesmo tempo – tem a liberdade de se movimentar nas profundezas dos oceanos, zonas do inconsciente.
REFERÊNCIAS
Severino, A. E. (1989). “As duas versões
de Água viva”. Remate de Males, Campinas, n. 9, p. 115-118.
Lispector, C. (1998). Água viva. Rio de Janeiro, Rocco.
Calvino, I. (1991). Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São
Paulo, Companhia das Letras.
Nunes, B. (1995). O drama da linguagem. São Paulo, Ática.
[1] No límpido e tranquilo espelho das águas da fonte de Téspias, Narciso contemplou a sua própria imagem. Conta o mito que ele, apaixonando-se pelo próprio e belo reflexo, permaneceu eternamente preso naquele local.
[2] O crítico Evando Nascimento, no
livro Clarice Lispector: uma
literatura pensante (2012, p. 40), afirma que o it em Água viva é a marca neutra que “enfatiza a rasura do ser da pessoa
humana em prol de algo fronteiriço entre o vivo (o bios) e o não vivo”.
[3]
Na mitologia grega, a Medusa
era uma das filhas de Fórcis e Ceto (divindades marinhas);ela e suas irmãs
Esteno e Euríale constituiam as três Górgonas. Conta a lenda, que a Medusa era
uma linda mulher que possuía asas de ouro, mas foi castigada pela deusa da
sabedoria, Atena, por ter feito amor com o deus do mar, Poseidon. Como
vingança, Atena a transformou em uma terrível criatura, um monstro ctônico do
sexo feminino, com pele escamosa e cabeleira formada por serpentes. A Medusa
tornou-se um perigo mortal e seus olhos, amaldiçoados, transformavam em estátua
de pedra todos aqueles que a olhassem de frente.
[4] Chama-se de instalação a
manifestação artística em que a obra de arte é o resultado de uma composição de
objetos (elementos) organizados em determinado ambiente, em que o objetivo da
linguagem artística é despertar sensações. Esse tipo de estratégia procura
despertar no interlocutor a postura crítica no âmbito da estética e das ideias,
além de conduzir o receptor para dentro da obra, fazendo com que ele reaja
instintivamente a ela.
[5]
Em seu livro Il Saggiatore
(O Ensaiador), publicado em Roma em 1623.
[6] O conceito de “fluxo de
consciência” foi cunhado por William James, no livro The Stream of
Consciousness (1892) e se refere ao turbilhão de pensamentos na mente
consciente, isto é, toda a gama de impressões, sensações, raciocínios que se
desenrolam em nível superficial. Para James, há quatro características deste
fluxo mental: 1 – cada estado tende a ser parte duma consciência pessoal; 2 –
dentro de cada consciência pessoal os estados estão sempre mudando; 3 – cada
consciência individual é sensivelmente contínua; e 4 – é interessada em algumas
partes de seu objeto em detrimento de outras, e essas partes são escolhidas ou
rejeitadas o tempo todo. O conceito se tornou uma técnica literária usada por
escritores como James Joyce, Marcel Proust, Virginia Woolf, T. S. Eliot, Julio
Cortázar, Clarice Lispector, Guimarães Rosa etc.
Katya Queiroz Alencar é Mestre em Estudos Literários pela UFJF, Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC/MG e Professora do Departamento de Comunicação e Letras da Unimontes. O ensaio aqui publicado é fragmento de sua tese de doutorado sobre Clarice Lispector defendida recentemente e publicada em livro neste momento pela editora Viseu sob o título de Pelas águas da Medusa: (ex) tradição, escrita e vanguarda em Água viva de Clarice Lispector, volume à venda no site da editora. As imagens são reproduções de fotografias de juventude de CL disponíveis na Internet sem crédito de autoria.