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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O salto de Décio / Anelito de Oliveira


O clima poético dos anos 1960 no Brasil está inscrito num documento hoje precioso, que são os Anais do Segundo Congreso Brasileiro de Crítica e História Literária [material publicado pela Faculdade de Letras de Assis em 1963], evento realizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (SP), de 24 a 30 de julho de 1961. Ali Décio Pignatari [1927/2012] apresentou sua tese polêmica denominada “A situação atual da poesia no Brasil”, problematizada exaustivamente por vários poetas e críticos, como Affonso Ávila [1928/2012], Augusto de Campos e Roberto Schwarz. 
Pignatari detém-se em três dos esforços poéticos que teriam estimulado, uns menos e outros mais, o “salto qualitativo” da poesia concreta: o poema “Un coup de dés”, de Mallarmé, alguns momentos da poesia de Carlos Drummond de Andrade e, sobretudo, da de João Cabral de Melo Neto. Em Drummond, que o ensaísta considera um “bom mallarmaico”, é que aparece, na poesia brasileira, um “fator novo”, que é “a questão de engagement – necessidade, sedução, desafio e impossibilidade para a poesia (até agora)”. Pignatari se reporta à ideia sartriana da poesia como “échec-réussite”, o “fracasso-êxito”, para, finalmente, chegar ao dilema da poesia contemporânea, que a poesia concreta vivenciava naquele momento: necessidade de engajamento sem deixar de ser poesia, sem tornar-se prosa. 
Escreve Décio Pignatari (1963, p. 379-381): "Drummond é o primeiro poeta brasileiro ‘em situação’, o primeiro a enfrentar a dura luta: o subjetivo do incomunicável se exterioriza no objetivo poemático do ‘échec-réussite’ da poesia, para empregar a fórmula terrível, fundamental, de Jean-Paul Sartre: (...) na poesia (contemporânea), a palavra é coisa e não mera portadora de significados, como na prosa, onde o leitor a atravessa ‘como um raio de sol atravessa um vidro’ (Valéry). (...) A contraposição sartreana fracasso/êxito encontra correspondência na teoria da informação, em termos de índices informacionais. A mensagem, entendida como carga de significados, é menos entrópica, é ‘maior’ na prosa (êxito), e mais entrópica, isto é, ‘menor’ na poesia (fracasso), que é tipicamente não-discursiva, ainda mais quando incorpora elementos da comunicação não-verbal, tal como acontece na poesia concreta, que constitui a mais radical divisão de águas entre poesia e prosa, na literatura contemporânea. Mas a questão não é tão simples, nem o problema superado. Poesia concreta não é apenas palavra concreta, mas também relações semânticas concretas". 
Pignatari termina sua tese afirmando que a poesia concreta daria o pulo “conteudístico-semântico-participante”, mas em direção ao “fracasso” peculiar à poesia. Teria o mesmo destino da poesia de João Cabral de Melo Neto, expresso no seu poema “Anti-ode ou contra a poesia dita profunda”. O “engagement” de Drummond não seria seguido, pelos poetas concretos, porque “seu resultado poético não foi tão grande quanto seu êxito discursivo”. Dois aspectos da poesia de Cabral, que em Drummond teriam sido sacrificados em nome do “engagement”, colocam-na no horizonte da poesia concreta, como sugere Pignatari: sua diferença radical da prosa, por um lado, e o fato de ser determinada por um “projeto” também no sentido sartriano, que implica uma sistematização dialética. 
Cabral estaria, portanto, no caminho aberto por Mallarmé, o poeta que “pela primeira vez na história da poesia moderna” aplicou “a ideia dialética de projeto”, produzindo uma “poesia-onça” que “traz na própria pele as suas pegadas”. A poesia concreta, diz Pignatari, “é a primeira grande totalização da poesia contemporênea, enquanto poesia ‘projetada’ – a única poesia consequente do nosso tempo”. Cabral é que permite que o “salto participante” da poesia concreta não signifique uma perda do seu referencial mallarmeano. 
Disto decorre, certamente, a indecisão nesse “salto”, como revela ainda Décio Pignatari (1963, p. 374-388): "Considerando-se projeto a mediação entre dois momentos de objetividade, a poesia concreta se encontra atualmente na situação em que se achava a Anti-ode. A onça vai dar o pulo. Até onde pulará para trás, para o êxito do verso? Ou conseguirá levantar a maldição sartreana, o suficiente, pelo menos, para prenunciar o fim da ‘poesia contemporânea’ (e este pode ser o grande desafio ao seu poder de invenção)? A poesia concreta vai dar, só tem de dar, o pulo conteudístico-semântico-participante. Quando – e quem – não se sabe. Nem se será percebido, numa sociedade onde a poesia, sobre ser gratuita, é clandestina. De qualquer forma, é preciso jogar os dados novamente. O projeto é coletivo também no tempo."  


Fragmento do livro A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila (Inmensa, 2012), de Anelito de Oliveira.