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quarta-feira, 15 de março de 2017

Cinco poemascanções de Jair Tadeu da Fonseca





MARIGHELA’SAMBA

Quem samba fica
Quem não samba vai embora
Quem anda fica
Quem não anda vai embora
Quem ama fica
Quem não ama não namora
Quem sangra finca
Marcas vermelhas na história
Quem samba estica
Quem não samba não demora
Ora
O samba é ambas
A alegria e o que descamba
O samba é o bamba
Que sacode enquanto zomba
O samba é bomba
Que explode quando é hora
O samba é coro
Que sorri enquanto choro
O samba é morro
– De morrer – e é da vida
O samba é dela
É também de Marighela




INVOCAÇÃO

Musa inspiradora
Musa exploradora
Musa expiadora
Musa piradora
Musa dura

Musa que me usa
Musa que lambuza
Musa que abusa
Musa obtusa
Musa suja

Musa que sufoca
Musa que pipoca
Musa que fofoca
Musa tão confusa

Musa imperatriz
Musa mera atriz
Musa meretriz
Musa por um triz
Dominatriz

Musa que põe mesa
Musa – que beleza!
Musa que me acusa
Musa que recusa
Minha música









LIÇÕES DE SIR LANCELOTE

É tão triste ser um cavaleiro medieval
Ainda mais nos anos de dois mil e tal
De que val’ seu amor cortês
Sir Sagramor
Se é um amor inútil
Talvez?
De que serve o seu amor
Sir Percival
Se é um amor inútil
Paixão de um ideal?
É bem difícil ser um cavaleiro andante
Em meio aos carros e edifícios gigantes
É muito triste ser o trovador de uma mulher
Ainda mais quando ela não lhe quer
O que é que val’
Sir Galvão
A vanglória desse amor
Se é um amor em vão?
De que serve o seu amor
Sir Tristão
Se é um amor
Tão triste então?
De que val todo seu feito
Sir Galahad
Com seu amor perfeito
Pela metade?







PSEUDOMORFOSIS

Me voy a dormir un rato
Cubrirme de un rastro de estrellas
Olvidarme de mi nombre
Soñarme que soy ratón
Una cucaracha o un ratón

Talvés la metamorfosis
Sea lo que tengo de hombre
O quizás mis esquimosis
Sólo resulten de el hambre

Yo quiero dormir un rato
Y si el insomnio me asola
Yo destruyo los retratos
Que un día hicieron de mi

Y esperaré por la noche
En que harán la canción
De el hombre que dormió un rato
Y entonces fue ratón
Una cucaracha o un ratón


  

OLHOS DE MANGÁ

Seus olhos de mangá
mangam de mim
Seus olhos de mangá
me enganam
Seus olhos de ressaca
dizem sim
Mas para quem saca
dizem não
Seus olhos de mangá
mudam de cor
Se olham para cá
eu vejo amor
Seus olhos de ressaca
mudam tudo
Se olham para lá
eu vejo dor
Seus olhos de mangá
esmagam
Seus olhos de mangá
de maga
são olhos grandes
gordos-magros
Seus olhos de mangá:
estragos
Seus olhos de ressaca
secam
Seus olhos de mangá
me molham
Seus olhos de mangá
dão fruto: manga!
Seus olhos de ressaca,
flor: manacá!
Seus olhos de chorar
não são os mesmos
Mas são os mesmos
olhos de mangá
Seus olhos de ressaca
de beber demais
são olhos de ressaca
de beber do mar











Poeta, cancionista, professor de Teoria Literária na UFSC, o mineiro Jair Tadeu da Fonseca, sem livro solo de poemas publicado, é uma das principais referências da cena pop brasileira nos anos 80, com notável atuação à frente de grupos de rock como o lendário O Último Número.  “Esses poemas foram escritos para se tornarem canções”, diz ele em nota enviada juntamente com estes trabalhos, “entretanto, podem e devem ser lidos, como os poemas dos líricos gregos, trovadores medievais e dos atuais poetas da canção popular”. As imagens, todas extraídas da Internet, são do artista plástico Raymundo Colares (1944/1986), um dos grandes perturbadores do pensamento plástico nos anos 1960/70, nascido e "suicidado" nas cidades sertânicas de Grão Mogol e Montes Claros, respectivamente.