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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Leminskino (um filme para ser lido) / Sylvio Back




SEQÜÊNCIA 0

INT/NOITE – Biblioteca. Casa em Curitiba. Anos ’80.

Cena alfa

De cócoras sobre roto tatame, um homem de seus 40 anos, vestido de judoca (quimono ornamentado com hai-kais de Issa Bashô Alice Ruiz) medita – olhos de peixe fisgado, tez e nez de polonais mestiço, juba africana.

Numa das mãos, copo de cerveja sem espuma; noutra, caixa de fósforos com mirra enfiada no miolo do tampo; de uma das extremidades às vezes ele aspira vapor como se de um narguilé rimbaudiano fora.

Articuladas à sua concentração outras figuras sorrateiramente intrometem-se na ação tentando protagonizá-la.

No chão espelhado de tagarelas tatuagens de antanho, ideo­gramas à Eisenstein esganando o diktat, iluminuras cristãs soturnas como sói – dedo em risco.


Do alto tenda de sangue pólvora suor essência de cona, cerca viva de esperma, e relva da juventude, se movem brilhosos – réptil de pesadelo.

Atados a prego máscaras de poetas zombeteiros impacientes com os deuses, epítetos enclausurados no mote, mulheres pudendas e os inimigos idos e vindos – além dos penetras de praxe augurando agouro.

No ambiente turbante zombies mal disfarçados e demos lar­gados.

A fúria dos acordes zen-haitec de Ryuichi Sakamoto corroem a cerimônia-transe do magnífico samurai das araucárias.

Papiros vasculhados, suspense de fonemas, livros pirograva­dos de Mishima, Rosa, Propp, Malone, Beckett, Petrônio, Fante.

Na cabeceira do rio Liffey da linguagem, catatau de poemas rimagens do inédito, hieróglifos e gravetos semânticos inda sem pai nem mãe.

O rock de Cruz e Souza: carma áureo.

Trotzky  Borges Pound Cristo – cantos crípticos.

Lennon e as chagas que exorcizam utopias baleadas pelas costas.






A estrela-menina da terra sem males lê a estrofe dependu­rada no ilustre caraíba: uma biblioteca de Alexandria a salvo da fagueira Curitiba.

Tão rápido quanto as fugas ao léu para redecorar as narinas e ouvir o vento dos sonhos níveos, ele posta-se hirsuto no cen­tro da sala – azado para o combate invisível e inviável.

A mais terrena das solidões acode às suas pupilas mas finge êxtase mastigando a gelatina das bochechas.

Os lábios singram palavras mudas e amuadas – estridentes.

Suave e felino põe-se movies, la terra trema.

Sobre círculos mínimos, como uma cantárida mutilada, dá so­bre-passos de goleiro, arca os braços do pênalti – sequer há flechas ou alvos.

Há golpes e goles, golfadas e estocadas.

O punho estala: aos poucos maré alta de músculos veias ner­vos em ponto de bala, nosso herói começa a levitar, os arte­lhos sujos da noite balouçam, mortalmente, nonados.

O aguerrido warrior de súbito aderna, cambaleia, a carcaça ameaça tombar.

E como que assoprado por algum duende impensado vê sua vontade aloprar – energia centrípeta, incoercível, incontorná­vel, ininputável.




Galinha sem cabeça, pomba-asteróide.

O bigode-Rasputin perde o prumo – não o rumo.

No entanto, tudo é sonrisas.

Maior o redemoinho do corpanzil maior o rumor da carne e d’alma – uma alegria do primevo arreganho fetal.

Fora do self, prisioneiro de atávica lumière, ele agora é uma velocíssima e formidável adaga – multicolor multifacética multiprofética.

Existência e tenência – uma coisa só.

Urdiduras do verbo e os interstícios do signo.

Infância e maturidade desossadas.

Desejos e o que nem chegou a vingar.

Vícios e versos – meros anelos.

Numa fusão lenta misto de véu e céu um bem temperado feixe holográfico entumesce a tela.

Ectoplasmando recorrentes casulos de angústias medos dores fictícias, o nosso personagem emite um belo berro de puro gozo.


FIM




Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor. Autor de trinta e oito filmes (doze longas-metragens), em 1986 teve publicado o seu primeiro livro de poemas, “O Caderno Erótico de Sylvio Back” (Tipografia do Fundo de Ouro Preto, Minas Gerais). Depois vieram "Moedas de Luz" (Max Limo­nad, São Paulo, 1988); "A Vinha do De­sejo" (Geração Editorial, SP, 1994); "Yndio do Brasil" (Poemas de Filme) (No­nada, MG, 1995), "bou­doir" (Sette Le­tras, Rio de Janeiro, 1999); “Eurus” (7Letras, RJ, 2004); "Traduzir é poetar às avessas" (Langston Hughes traduzido) (Memorial da América Latina, SP, 2005); "Eurus" bilíngüe (português-inglês) (Ibis Libris, RJ, 2006); e “As mulheres gozam pelo ouvido” (Demônio Negro, SP, 2007). Back tem igualmente editados livros de contos, ensaios, dez roteiros de seus filmes. "Leminskino" é um dos textos do novo livro de Sylvio Back, intitulado Kinopoems, que será publicado pela Orobó Edições (www.oroboedicoes.blogspot.com.br) este ano.

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