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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Um bandoleón em peito tísico. Livre especulação sobre “Pneumotórax”, de Manuel Bandeira / Jair Corgozinho






A poesia, antes de se tornar o inutensílio mais nobre da literatura, era uma “arte das musas”, irmã da música, ritmo, uma pulsão estética inata ao homem. Esse traço de origem, primitivo e atávico, tornou-se um referente, uma identidade sonora para a palavra dos poetas e, em alguns casos, um atalho para seguir o itinerário de uma poesia que se anuncia, física e espiritualmente, ligada à música. Um dos poetas a que me refiro é Manuel Bandeira, autor de “Pneumotórax”, poema essencialmente primevo, apesar de publicado em Libertinagem (1930), quarto livro do autor.
Acreditava-se que a vocação profissional do jovem Manuel Bandeira o chamava para a arquitetura. Como se sabe, em 1890, Bandeira deixa a cidade de Recife, muda-se com a família para o Rio de Janeiro e, em 1903, vai para São Paulo, onde se matriculou no curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica. No seu Itinerário de Pasárgada (Nova Fronteira, 1984, p. 27), o poeta narra: “Não era minha ambição ser poeta e sim arquiteto, gosto que me foi muito jeitosamente incutido por meu pai. (...) Se eu escrevia versos, era com o mesmo espírito desportivo com que me equilibrava sobre um barril lançado a toda a força das pernas, o que de modo nenhum me fazia sentir com vocação pra artista de circo”.

Começaria naquele ano, em que chegou a São Paulo, outra vida, seguiria a carreira profissional desejada e deixaria as incipientes experiências poéticas infanto-juvenis guardadas para sempre. Mas, com pouco tempo, o seu destino se revelou diferente, com notas de tragédia ― conceito aqui tomado como era para os gregos de Sófocles ―, fazendo o esperado ceder lugar para o estranho, o não habitual. Cabe recordar que a tragédia grega possui caráter universal. Seu conceito de destino tem, por pressuposto, atingir a todos os homens de todas as épocas. Frente ao trágico, cada um de nós, inevitavelmente, vai se flagrar indagando sobre as limitações de nossa condição humana e sobre como lidar melhor com as nossas fraquezas e insuficiências.
Essa irrupção trágica veio no final de 1904, Bandeira adoeceu e foi diagnosticado tísico. A doença impunha-lhe outra expectativa de destino, breve e mórbido. Viu-se obrigado a abandonar os estudos e iniciar, apesar de não contar com uma boa situação financeira, uma rotina de viagens. Esteve em várias cidades em busca de condições climáticas adequadas para o tratamento de sua saúde, chegando a passar um período em Clavadel, na Suíça, lugar decisivo em seu itinerário pelo trágico até a libertinagem.
Num outro trecho do Itinerário de Pasárgada (1984, p. 131), o poeta discorre: “Quando cai doente em 1904, fiquei certo de morrer dentro de pouco tempo: a tuberculose era ainda a “moléstia que não perdoa”. Mas fui vivendo, morre-não-morre, e em 1914 o doutor Bodmer, médico-chefe do sanatório de Clavadel, tendo-lhe eu perguntado quantos anos me restariam de vida, me respondeu assim: O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida; no entanto, está sem bacilos, come bem, dorme bem, não apresenta em suma nenhum sintoma alarmante. Pode viver cinco, dez, quinze anos... Quem poderá dizer? Continuei esperando a morte para qualquer momento, vivendo sempre como que provisoriamente”.
Essa condição provisória, o “morre-não-morre”, continha a condição trágica que revelaria o poeta de A cinza das horas, em 1917: “Foi nesses treze anos que tomei consciência de minhas limitações, nesses treze anos que formei a minha técnica”, afirma Bandeira (1984, p. 29). A doença trouxe-lhe a ociosidade, mas também a necessidade de ocupar as horas cinzentas e anular o sentimento de inutilidade. Os versos, antes escritos por divertimento, ressurgem no centro da tragédia pessoal, por fatalidade, por necessidade.
Bandeira assume, com invejável disciplina, uma postura de leitor interessado e investiga o processo criativo de seus poetas prediletos e transpõe para a escrita de novos versos o aprendizado que adquire. Cotejou bons e maus poetas. Estudou música, ritmos, impregnou-se de melodias. Concluiu, antes de ler Mallarmé, que poesia se faz com palavras. Deixou-se influenciar e escreveu até sentir o ímpeto de publicar. A morte anunciada iria, aos poucos, mas percuciente, se acomodar à vida, mas para isso seria preciso reencenar a consulta com o Dr. Bodmer, em Clavadel.
É bastante curioso o fato de Bandeira (1984, p. 53) afirmar ainda no seu volume de memórias Itinerário de Pasárgada, que “Essa estada de pouco mais de um ano em Clavadel quase nenhuma influência exerceu sobre mim literariamente...”. Entendemos que essa afirmação se intensifica com o fato de Bandeira também deixar ao largo de suas memórias o poema “Pneumotórax” que, inegavelmente, tem suas raízes no sanatório daquela cidade.
De certa maneira é explicável o fato de Clavadel não constar como uma referência poética maior para Bandeira, já que se trata do lugar onde tomou consciência de ser portador de “lesões incompatíveis com vida”. Mas foi justamente a partir de Clavadel que lhe notamos uma aproximação cada vez mais íntima e constante com o universo da poesia e que o levaria a detentor de uma invejável formação lírica. A partir daquele diagnóstico, a morte sempre vizinha, que levaria o “menino doente”, conferiu-lhe uma poeticidade singular aos versos criados “como quem morre”.
O poema “Pneumotórax”, de irrecusável traço autobiográfico, parece-nos afirmar que, após um tempo de profunda imersão mórbida, o poeta tenha adquirido, por saturação talvez, condição de conviver com a “Indesejada das gentes” de modo humorístico, mas um humor sem riso.

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
— Respire.

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Nesse poema, tem-se o reencontro com Clavadel e com o espectro do Dr. Bodmer. Bandeira apresenta-nos uma releitura de sua tragédia particular assumindo a perspectiva do humor irônico. A encenação de uma consulta médica, retratada de maneira visual e sonora, reinventa a peripécia do diagnóstico.
Inicia-se expondo os sintomas gerados pela doença, caracterizados pela indisposição corporal: “Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.” À apresentação dos sintomas, segue-se um verso lapidar, um aforismo preciso, que configura uma síntese existencial perfeita: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi.” A estrutura anafórica do verso “Tosse, tosse, tosse.” sugere a presença continua do mal instalado no peito e na voz.
A segunda estrofe dá plasticidade para a cena da consulta e do diálogo entre o médico e o paciente. Nela, as reticências que pontilham o verso sugerem as dificuldades de uma respiração profunda e cansada. Esses momentos reticentes insinuam uma retomada de fôlego do paciente que se prepara para o diagnóstico.
Os versos finais simulam a irreversibilidade do destino ao contrastarem a fala precisa do doutor e a indagação interessada do paciente:

 — O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

E, com o último verso, Bandeira funda a imagem substancial do espetáculo de sua poética, apresentado com passos rítmicos entrecortados de dor e de humor:

— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Esta imagem, “tocar um tango argentino”, comporta, implicitamente, uma função metalinguística. Entendemos que Bandeira buscou alcançar nesse último verso a dramaticidade que melhor lhe convinha ao humor, com direito à música, à pluralidade emotiva, à visceralidade e ao ensimesmamento que o caracterizam como poeta. Em outras palavras, o “menino doente” foi seguir seu itinerário até Pasárgada, foi, por aconselhamento médico, tocar seu “tango argentino”. Não um “samba”, não um “frevo”, não um “jazz”, mas um “tango”, com ênfase abstrata no gentílico “argentino”, indicando o espírito de uma identidade trágica que se encarnará em versos.
Nossa perspectiva é a de que, em “Pneumotórax”, o “tango argentino” é o signo de uma manifestação desterritorializada de um modus vivendi, que se reterritorializa poeticamente em Bandeira, como uma condição intrinsecamente ligada à experimentação do ritmo melancólico da vida e dos humores e sortilégios de uma realidade amarga.
O tango se sabe tocando, dançando, ouvindo. Mas podemos verbalizar algumas de suas imagens, um pouco de sua alma, respaldadas pelas vozes dos poetas Enrique Santos Discépolo, Jorge Luis Borges, José Gobello e Ernesto Sábato. Para Discépolo, o tango “é um pensamento triste que se pode bailar”. Para Borges, o tango é “uma forma de caminhar pela vida”. Para Gobello, o tango “não foi feito para se cantar o que se tem, mas o que se perdeu”. Para Sábato, o tango “é dramático, é introvertido, introspectivo, trágico...”. Em comum nesses comentários, acentua-se uma percepção do tango como manifestação externalizada de um drama íntimo, uma tristeza de estar-no-mundo que os tangueiros irão assumir publicamente, com singular beleza.
De origem controversa e multifacética, o tango esteve a princípio identificado com o submundo dos bordéis e dos cabarés, com a malandragem e com a vida proletária. Aos poucos, ganhou lugar nas casas de família e mais tarde conquistou os salões das elites que se renderam à sua languidez e melancolia, à voz de Carlos Gardel e ao bandoneón de Astor Piazzolla.
Seus temas estão ligados a motivos transgressores, formando uma cadeia de ideias que, ao mesmo tempo, alimenta sua aura como o rotula com impressões estereotipadas. Não raro, o tango é associado a imagens de seres obscuros, deserdados, um sem número de solitários tragicômicos que se autoflagelam por perdas e desvios morais, amores e traições. Mas, igualmente, corrobora imagens de sensibilidade extrema, remetendo ao passado distante, à infância, à nostalgia da terra distante. Tudo amalgamado em uma atmosfera de tristeza única, que dá ao tango uma identidade tonal que não encontramos em outros gêneros que também se ancoram em temáticas tristes, como o fado ou o flamenco.
Em “Pneumotórax”, quando Bandeira se refere ao “tango argentino”, antecedido por um abrupto “Não”, estabelece uma quebra de ritmo, de compasso, uma mudança na respiração do poema. Aos olhos da crítica literária brasileira, essa quebra tem efeito nonsense, devendo ser compreendida como uma reação de humor cáustico, autoirônico, contra o infortúnio da doença. Assim a referência ao “tango” seria meramente uma tirada espirituosa e fortuita, importando mais o efeito de ruptura, de quebra de expectativa.
Mas acreditamos que o gesto de humor, a escolha da imagem inusitada, tenha sua origem concernente ao encantamento que, na década de 1920, o tango provocava nos ouvidos brasileiros. No momento em que o poema é publicado, livro Libertinagem de 1930, a voz de Carlos Gardel é dona de um sucesso arrebatador. O tango argentino popularizava-se, era assimilado em nosso país. Muitas composições portenhas foram interpretadas, traduzidas e relidas por nossos melhores músicos e cantores. Portanto, a imagem do “tango argentino”, no verso cabal de Bandeira, tem sua razão de ser e o seu significado, mesmo que de modo inconfesso, irá se propagar em surdina por todo conjunto de sua obra poética. O verso “A vida inteira que podia ter sido e que não foi” era já, com toda sua intensidade trágica, uma manifestação desse espírito emanado do tango.
Assim como o tango surgiu no final do século XIX, para ser a melhor expressão do modo de viver intenso, dramático e satírico, do portenho, a poesia irrompeu em Bandeira para ser um modo de sentir e conceber apaixonadamente a tragédia e a comédia da vida. O lirismo bandeiriano é refinado e técnico, como o desenho impecável de um passo de tango sobre o chão. É profundamente sentimental e dolorido, intenso e visceral. Lirismo que se abre ao amor volúpico, à irrefreável pulsão erótica celebrada em mulheres puras ou degradadas. Lirismo de libertinagem, da tragédia cotidiana, dos becos, da liberdade mundana, dos bares e cafés baratos. Lirismo como tango, como uma forma de estar na vida, vivendo-a e transgredindo-a.
Em dado momento de suas memórias, Bandeira (1984, p. 49) afirma: “Não há nada no mundo de que eu goste mais do que de música”. Sim, gostava tanto que compôs, foi musicado, citou ritmos, mas, sobretudo, foi sob conselho médico, encantada solução poética, “tocar um tango argentino”. Foi experimentar outra sonoridade, diferente daqueles sons roufenhos, tísicos, que insistiam de dentro do pulmão doente, e trouxe, para o peito, o bandoleón.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
BANDEIRA, Manuel. A cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994.
BANDEIRA, Manuel. Libertinagem & Estrela da Manhã. 16.ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.
BORGES, Jorge L. "Historia del Tango". In: Prosa Completa, vol. 1. Barcelona: Bruguera, s.d.p.











Poeta, prosador e ensaísta, Jair Alves Corgozinho Filho é um dos nomes mais significativos da produção literária mineira contemporânea ainda sem livro solo publicado. Mestre em Literatura Brasileira e Memória Cultural pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, é um brilhante professor em Belo Horizonte, onde reside. Foi co-fundador e secretário da Revista Orobó: arte, poesia e crítica da cultura de 1997 a 1999 e integrará o Conselho Editorial da publicação em seu retorno a partir de abril próximo. Idealizador e Coordenador do Projeto Poético “A necessidade do supérfluo” realizado em 2011 em Belo Horizonte.