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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Cinco poemas de Telma Scherer









Esta tarde me ama
com desejos de pão.
Os pássaros alardeiam
os gatos brincam
esta roupa me cospe
suas sobras de sabão.

Observo na tarde as margaridas,
as colheres secando sobre a pia,
a fome,

o rosto deste homem, sua barba.
A barba deste homem, sua sobra.
O soco deste homem, meus miados,
os gatos enrolados no tapete.
















Eu preferia a boneca Fofolete, 

que vinha dentro 

de uma caixinha 

de fósforos.

Aprendi a me comprimir. 

Busco o menos que é mais. 

Evito tanto.


Tudo aquilo que tenho, me oprime.


Porque ando a pé, não preciso 

de uma vaga para o carro.


Viajo. Nas minhas malinhas, 

cabe o mundo. 

São elas 

que me deixam andar.


Ainda assim, tenho a caixa. 

Ela aquece, faísca. Dói.

Às vezes, dá samba.

Geralmente 

dá em nada.


Meu tudo 

é a imensidão dos fósforos.
















Na lista das coisas mais chatas:
a luz laranja do quarto,
e você.
O réquiem das falas brilhantes
e os livros que ainda não li.

Antigamente, você era bom, 

ao vivo.

Hoje, uma lista de coisas 

inúteis ou impossíveis:
livros, nós, a guitarra, 

suas citações, 

e o suor da solidão.

Livres, enfim, no parque frio,
esse parque sem lagos,

na praça férrea, no touch pad,
o vento vento
vento vento

não arma mais os seus cabelos.

Cansei de você, agora, invento

para mim a rouquidão.

Você apaga a luz, enfim:
há Tom Waits, e você sente viva

a vibração da espera.
Tira a roupa e eu me sinto livra:

ladra do seu olhar furtivo.













engasgada no lenço
o lenço no pescoço
a chuva lá fora
o vento tão dentro

engasgada no lenço
o tempo na garganta
o riso pé rasgado
madrugada tanta

engasgada na trova
a boca a boca fora

ainda há noite
quando roubam
o último gole da manhã














Dias de campo podre, cogumelos brotando da merda, zinco, fósforos queimando cigarros, ciganas puxando a minha mão. A manhã está repleta de segredo, se comprime nas frestas do dia, espera acontecer. Sinto cheiro de esgoto, mas é só umidade. Grilos de querer silêncio. Sono longo ao lado da gata. É tão simples o amor.


















Telma Scherer é artista e professora do Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas da UFSC. Publicou o romance Lugares ogros (Caiaponte, 2019), o livro de artista Entre o vento e o peso da página (Medusa, 2018) e cinco livros de poesia, entre os quais Squirt (Terra Redonda, 2019), semifinalista do prêmio Oceanos. É formada em Filosofia e em Artes Visuais, com mestrado e doutorado em Literaturas sobre a obra de Ricardo Aleixo, com período sanduíche na Universidade do Porto (Portugal). As imagens são do holandês Kees Van Dongen (1877-1968), que deu visibilidade ao comportamento transgressor de mulheres nas primeiras décadas do século XX.



4 comentários:

  1. Uma delícia de poesia. Dessas de se servir no café da manhã.

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  2. Poesia que se (nos) desdobra em sentidos recheados de um lirismo que flui entre o pessimismo (Na lista das coisas mais chatas:/ a luz laranja do quarto/e você.") e a impassividade de ser(Nas minhas malinhas,/cabe o mundo./São elas me deixam andar."
    Ler suas poesias é ver/ler o simbólico das palavras se realizando em cada verso.

    Rafael

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