Três poemas de Fabrício Marques

LEGADO

Desses que com uma caneta desmoronam o município.

Bala perdida tem mira precisa.

Gentileza se esconde em locas.

Desses que tratam a usura com mãos de veludo.

A comunidade suarenta só atrapalha.

As pessoas são lesões na paisagem.

Desses que semeiam infortúnio em quatro vias carimbo e tudo.

A grande angular perdeu o incêndio das seis e a negociata das sete.

Uma única voz se multiplica no dial.

Desses que atravessam os séculos sem deixar rastros.

Mapas são refeitos com perícia incomum.

Há sempre tranquilo uma brecha encontrar.

Desses que mantêm a verdade em desalinho.

A melhoria não sai núncaras do papel.

A quem recorrer se a escola dormir?

Desses que só deixam de herança desertos.

A comunidade dura e perdura na pindaíba.

A vaziez escorre rápida pelo sumidouro.

O país, num baque, continua para trás

e para frente, para trás e para frente.

O QUE SE PASSA DENTRO E FORA

Dentro

acordávamos

súbito insones

O deslumbre com que víamos:

o vento brincando nas arcadas

em intervalos cada vez menores

pousava e decolava de seu corpo

Lá fora

a chuva severa

noite escura

                        e drones

MINAS

Nuvens, montanha

Estação de trem desativada

O progresso sempre ali na esquina

Tempos que coexistem num só tempo

No outono, esperar pelo inverno

No inverno, esperar pelo outono

As nuvens sempre têm razão

A montanha liberta

Fabrício Marques é um dos poetas mais consistentes de sua geração, referência de um processo lírico que leva a conseqüências extraordinárias aquisições modernistas e pós-modernistas brasileiras e estrangeiras, tendo sempre na reflexividade drummondiana um parâmetro notável. Nasceu em Manhuaçu, na Zona da Mata Mineira, em 1965 e estreou com Samplers (poemas, Relume Dumará, 2000, Prêmio Cultural de Literatura do Estado da Bahia), ao qual seguiram-se Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski (ensaio, Autêntica, 2001), Meu pequeno fim (poemas, Scriptum, 2002), Dez conversas (entrevistas com poetas contemporâneos, edição bilíngue, Gutenberg, 2004), A fera incompletude (poemas, Dobra Editorial, 2011, finalista do Jabuti e do Portugal Telecom) e Uma cidade se inventa (ensaio-reportagem, Scriptum, 2015), além dos livros para crianças O zoológico da Sofia e O pequeno livro dos recordes (ambos pela Aaatchim!, 2013). Jornalista, professor e pesquisador, é Mestre e Doutor em Literatura Comparada pela UFMG, editou o Suplemento Literário de Minas Gerais (2004) e organizou para a Coleção Inéditos&Dispersos da UFMG Sebastião Nunes (2008) e Papel passado de Libério Neves (2013). Os poemas aqui estampados, todos ainda inéditos, fazem parte do seu novo livro, A máquina de existir, em vias de ser lançado pela Dobra Editorial. E-mail: marques.fabricio@gmail.com. As imagens são do artista plástico goiano Elder Rocha, nascido em 1961, professor de Artes Visuais na UNB, extraídas de http://www.paradigmasgaleria.com/pt/archives/480