À procura do elo perdido
A poesia
brasileira aparecida ao longo da década de 1990 foi vista com bastante
entusiasmo, principalmente por pesquisadores universitários, por poetas estabelecidos
que se reconheciam como seus influenciadores e, claro, pelos próprios novos
poetas. Pode-se falar mesmo de uma certa unanimidade, entre os produtores e
receptores dessa poesia, em torno de um caráter positivo da diversidade de linguagens
que caracteriza aquele momento, tanto em termos formais quanto conteudísticos,
o que não aconteceu em períodos anteriores, sempre marcados por posicionamentos
ortodoxos, pela intransigência dos grupos fundamentados em valores estéticos e
ideológicos.
Nos anos 90,
cada um passou a fazer o que queria fazer: poesia verbal, visual, videopoesia,
infopoesia, poesia sonora, soneto, poema-piada, balada, hai-kai, poesia negra,
poesia gay, poesia feminina, neobarroca, modernista etc, um vale tudo.
Assistimos, sem dúvida, a um espetáculo de democracia na cena poética, reflexo
natural da chamada “abertura democrática” de 1985. Nunca se escreveu tanto, nunca
a produção de livros de poesia foi tão grande, nunca houve tantas revistas
voltadas para a divulgação de poesia.
Impossível negar
a importância de toda essa efervescência para o processo sociocultural
brasileiro como um todo, impossível negar a pertinência da democratização do
espaço poéticoliterário. Não é isso, portanto, que pretendo sequer sugerir
nestas linhas, não quero, para lembrar Leminski, “fazer chover no piquenique”
da geração 90, mas apenas introduzir uma interpretação que me parece relevante,
uma problematização fundamental em toda tarefa de interpretação, que é a de
restabelecer o elo entre a voz e o lugar.
Esse elo, que
corresponde à relação entre ideias e coisas, perde-se, oblitera-se ou
dispersa-se inevitavelmente quando se fala, e, mais ainda, quando se escreve,
ainda mais quando se trata de uma escrita incontrolavelmente conotativa, como é
o caso da escrita literária e, de maneira muito particular, da escrita poética.
Quando se escreve, perturba-se, inevitavelmente, a relação natural entre planos
ideal e real; quando se escreve muito, a tendência é essa perturbação aumentar,
tudo se nos apresentando embaralhado.
A perturbação é
inerente à escrita, que vem a ser o alicerce da democracia, como argumenta
Jacques Rancière em Políticas da escrita
(Editora 34, 1995, p. 9-15):
Ora, a escrita é
aquilo que, ao separar o enunciado da voz que o enuncia legitimamente e o leva
a destino legítimo, vem embaralhar qualquer relação ordenada do fazer, do ver e do dizer. A
perturbação teórica da escrita tem um nome político: chama-se democracia. (...)
Há democracia – e política, consequentemente – porque há palavras sobrando,
palavras sem referente e enunciados sem pais que desfazem qualquer lei de
correspondência entre a ordem das palavras e a das coisas. A deserção
democrática da incorporação comunitária é solidária da deserção literária da
encarnação. Literatura e democracia são dois modos de invenção de quase-corpos
ou de incorpóreos cujo dispositivo fragiliza as encarnações e as identificações
que ligam uma ordem do discurso a uma ordem das condições. Essa comunidade
estética da separação é uma comunidade política da deslegitimação.
Do Barroco a
Baudelaire
Nossa “comunidade”
ocidentalizada tem em comum a experiência do “veto ao ficcional”, do “controle
do imaginário”, como explorou exaustivamente Luiz Costa Lima (O controle do imaginário & A afirmação
do romance, Companhia das Letras, 2009), toda uma tradição de repressão que
a arte tem procurado, desde os antigos trágicos gregos, rechaçar, um ideal
intimamente ligado à vontade de humanização do homem, como ficou modernamente dito
pelos românticos alemães, de Goethe a Novalis. Rechaçar a tradição da repressão
equivale a instaurar o “regime da letra órfã”, nos termos de Rancière,
independente de “pai”, a letra arbitrária, selvagem, subversiva, que não
depende de um Senhor para legitimá-la, como se ela não pudesse realmente
estabelecer-se na presença do “pai”.
Este
entendimento está claro, a meu ver, nas três principais poéticas da Modernidade
ocidental: a barroca, a romântica e a simbolista, poéticas da desrepressão,
pode-se dizeer, marcadas que são pela vontade de fazer emergir as sombras, as
incompletudes, os dilaceramentos que constituem o sujeito no mundo. Interessante
notar que aquilo que consideramos Barroco é relativamente “vizinho” de dois
eventos de “liberação” da letra, o Renascimento e a invenção da imprensa.
Barroco, Romantismo e Simbolismo são poéticas que, diferentemente da poética
clássica de extração romana, não se relacionam de forma autoritária com o real,
o que lhes permite colocar em xeque qualquer primado absolutizante de verdade,
de belo, logrando explicitar, consequentemente, a crise do sujeito.
O reconhecimento
do significado profundamente positivo dessas poéticas veio, a partir do final
do século XIX, dos próprios modernismos, sobretudo, que no fundo são, por toda
parte, reverberações do Barroco, do Romantismo e do Simbolismo, como, frisando
as duas últimas poéticas, reconhece Alfredo Bosi, no seu O ser e o tempo da poesia (Cultrix, 1990, p. 151):
(...) a
verdadeira poesia seguiu a senda aberta pelos românticos e pelos simbolistas
inventando mitologias libertadoras como resposta consciente e desamparada às
tensões violentas que se exercem sobre a estrutura mental do poeta. O
Surrealismo e o Expressionismo são viveiros de mitos pessoais ou de pequenos
grupos em que se projetam desejos de expansão titânica ou demoníaca de homens
cuja força de ação se inflete sobre si mesma, incapazes que são de dominar
sistemas cada vez mais anônimos. Demiurgo da própria impotência, o poeta tenta
abrir no espaço do imaginário uma saída possível.
Dessas três
poéticas descende a imagem que temos do poeta na modernidade. O poeta como
estranho, o albatroz baudelairiano, “exilé sur le sol”, impedido de voar pelas
próprias asas gigantes, o satã, o amaldiçoado, o maldito, o rebelado, o
abandonado, o isolado. Tudo isso vale para Baudelaire tanto quanto para
Rimbaud, Mallarmé, Blake, Hölderlin, Whitman, Cruz e Sousa etc. Baudelaire é a
imagem-síntese do poeta na alta modernidade, o lírico que flana entre as ruínas
do capitalismo, como o fixou Walter Benjamin (Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, Brasiliense,
1994), mas também o poeta que estabelece uma conexão entre a modernidade, socioeconomicamente
entendida, e o Barroco, operando com uma “raison baroque”, como mostra Christine
Buci-Glucksmman (La raison baroque: de
Baudelaire a Benjamin, Galilé, 1984).
Essa imagem
baudelairiana do poeta contém, portanto, uma estranheza psíquica, cultural,
espacial e temporal, toda uma estrangeiridade que, até mesmo em função da sua
encarnação no século XIX, passou a constituir a identidade do poeta nas
primeiras três décadas do século XX. A imagem-Baudelaire está em Maiakóvski, em
Lorca, em Pound, em Eliot, em Celan, em Trakl, em Vallejo, em Pessoa, em
Sá-Carneiro, em Paz; está, em termos nacionais, em Mário, em Oswald, em Emílio
Moura etc. Entretanto, no caso do Brasil, essa imagem aparece encarnada já no
século XIX em Cruz e Sousa, que, através de Baudelaire, passou a “pensar a arte
como espaço de representação dos abismos, da dor e do horror”, conforme o
lúcido olhar de Ivone Daré Rabello (Um
canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa, Nankin/Edusp, 2006).
Também assimilam
essa imagem poetas como os mineiros Alphonsus de Guimaraens e José Severiano de
Rezende, mas é Cruz e Sousa que, com seu negro inferno, confere um traço
diferencial brasileiro a essa imagem. Cruz e Sousa não é, obviamente, paradigma
para a produção poética brasileira do século XX, apesar de sua fortuna crítica,
de seus inúmeros adoradores e do respeito que muitos nomes ilustres lhe
devotaram. Cruz e Sousa, que mais se aproxima da imagem baudelairiana do poeta,
tem alguma coisa a ver com a desconexão dos poetas dos anos 1990 com Baudelaire
no Brasil? Com esta pergunta, retornemos ao agora.
A imagem-Stevens
Grande parte da
poesia produzida nos anos 90 no Brasil é marcada por procedimentos comuns, cada
livro parece com outro já lido, uma identificação que diz respeito, sobretudo,
aos limites do dizer. A impressão que fica, ao fim de cada leitura, é que havia
uma espécie de “código de trânsito” naquela produção que não podia ser subvertido,
um código que todos os poetas conheciam “de cor e salteado” e, naturalmente,
respeitavam. Esse cumprimento rigoroso do “código” é justamente o que nos faz
pensar num controle da sensibilidade, da sensação, que resulta num sufocamento
da dimensão empírica do sujeito em função de uma suposta dimensão mais racional.
Tal procedimento
teve suas motivações em leituras de João Cabral e dos concretos paulistas,
leituras que privilegiaram aquilo que acabou conferindo singularidade a essas
poéticas, o racionalismo, leituras superficiais, portanto, já que essas
poéticas também têm seu delírio, sua paradoxal transcendência na imanência.
Cabral, Augusto de Campos e Haroldo de Campos – Décio Pignatari nem tanto –
acabaram se tornando os poetas mais influentes na década de 90, até porque se tornaram
os mais presentes na cena poética, uma vez que Carlos Drummond de Andrade e
Paulo Leminski, que tinham uma presença marcante, morreram ainda no fechamento
dos anos 1980, em 1987 e 1989, respectivamente.
Drummond “rivalizava”, no bom sentido do
Harold Bloom de The anxiety of influence
(Oxford University Press, 1997), com Cabral, praticando uma poesia ligada ao
dia-a-dia, factual, dialógica; Leminski “rivalizava” com os concretos,
praticando uma poesia pop, jovial, “malandra”. Drummond e Leminski conceberam
uma linguagem poética, a um só tempo, rigorosa e prazerosa, para lembrar Barthes,
que tocava fundo – e ainda toca – na existência do leitor. Esses dois poetas
mantinham o elo com a imagem do poeta baudelairiano, o que era quase óbvio no
caso de Drummond, nascido na alvorada do século XX, egresso da primeira hora
modernista.
Não era tanto de
se esperar que Leminski mantivesse tal elo, não apenas devido ao fator idade,
mas, sobretudo, devido à intervenção da cultura norte-americana na formatação
da sensibilidade de sua geração, através do rock, da “pop art”, do cinema etc. O
poeta de La vie en rose, que alardeia
em seus últimos dias uma grande admiração pelo cinema – não-holywoodiano, claro
– norte-americano, mantém-se ligado à imagem-Baudelaire, bem como a todo o
Simbolismo, mantém-se intimamente conectado à cultura europeia, portanto.
Talvez a conjunção América/Europa em Lemisnki tenha seu estímulo em Oswald de
Andrade: “O cinema americano informará”, como diz o “Manifesto antropófago” (A utopia antropofágica, Globo, 1990).
O
desaparecimento de Drummond e Leminski, dois “poetas fortes”, para falar ainda
com Bloom, coincide com o início de um processo de adesão entusiasmada do segmento
letrado da sociedade brasileira ao eixo cultural estadunidense. Trata-se,
evidentemente, da consumação de um fato que vinha se verificando desde os anos
1960, sempre encontrando resistência por parte da grande maioria dos letrados,
que se engajava ardorosamente em lutas contra o chamado “capital estrangeiro”.
No fim dos anos 80, essas lutas perdem seu sentido e, automaticamente, a língua
inglesa passa a ter primazia em relação à francesa e poetas modernistas
norte-americanos, como Wallace Stevens e Williams Carlos Williams, são
amplamente difundidos no centro cultural brasileiro, isto é, Rio e São Paulo.
Os grandes
debates, então, deixam de ser em torno de poesia para ser em torno de tradução
de poesia, especialmente do inglês para o português, uma luta em torno da
fidelidade ao original. O poeta paulistano Régis Bonvicino se tornaria ao longo
dos anos 90 o principal divulgador da poesia contemporânea estadunidense no
Brasil, traduzindo e editando autores como Robert Creeley, Douglas Messerli e
Michael Palmer. Todavia, foi num modernista, Wallace Stevens, que muitos novos
poetas brasileiros do fim dos anos 80, que queriam se diferenciar dos
“marginais” dos anos 70 tanto quanto da disciplina cerebral dos concretos,
encontraram um referencial altamente plausível, uma poesia sensata, digamos,
sem radicalismos formais nem conteudísticos, sem agonia, sem delírio, numa
palavra: sem relações comprometedoras. A propósito, Paulo Henriques Brito,
responsável pela tradução de Stevens para uma edição da Companhia das Letras,
chega a declarar que aprendeu fazer poesia também com esse exercício (“O filho rebelde
de Cabral”, entrevista a Carlos William Leite, Revista Bula, 2008, www.revistabula.com / acesso: 13/02/2013)
Desprovida da
profundidade romântica que caracteriza a modernidade, a poesia de Stevens,
superficiosa, voltada para a descrição das coisas, nunca para a decidida
alteração da ordem natural das coisas, torna-se o paradigma da poesia
brasileira que se estabelece nos anos 90. Nesse paradigma, pode-se dizer que os
poetas desta última década do século reconheceram um uso da escrita capaz de
não repetir aquilo que, para eles, talvez tenha sido um “erro”, a causa dos
desastres que perseguiram os poetas da aurora da modernidade aos anos 70.
Reconheceram, portanto, uma “política da escrita” mais eficaz, mais apropriada
para a “nova ordem” sociocultural, um olhar que direciona o poema não para o
dissenso – que está no cerne da política mesma, conforme Rancière –, mas para o
consenso, que configura a anulação da política.
Régis Bonvicino
As instituições
que zelam pela civilidade, sobretudo a Universidade e a imprensa, contribuíram
de forma decisiva, ao longo dos anos 90, para o estabelecimento de um novo
paradigma no cenário poético brasileiro, para uma conversão da
imagem-Baudelaire em imagem-Stevens, do maldito em bendito, essa migração do
poeta de um mundo “sujo” para um mundo “clean”. Setores da universidade e da
imprensa acabaram por reconhecer bom gosto nesse paradigma e o legitimaram,
cabendo aos poetas colocá-lo, portanto, em prática.
Coube a Régis
Bonvicino dar início a esse processo de “stevenização”, como poderíamos
chamá-lo, da poesia brasileira, com seu 33
poemas (Iluminuras), aparecido justamente em 1990, livro em que se confrontam
duas sensibilidades, aquela “coloquial-irônica”, que Edmund Wilson identificou num
pólo do Simbolismo francês, e outra, racionalizante, não exatamente
“sérioestética”, como o crítico norte-americano também definiu o pólo Mallarmé-Valéry.
Racionalizante porque já não está em questão a “seriedade”, muito menos a
“estética”, mas uma tentativa de racionalizar o poema, o que implica,
naturalmente, um distanciamento do lugar do acontecimento poético.
Bonvicino, nesse
esforço de racionalização, promove uma considerável alteração no “rosto” do
poema, conferindo-lhe um aspecto escritural, de coisa grafada no papel, não
mais “soprada” contra o papel, depois de ter sido flagrada no ouvido, como
ocorreu no modernismo brasileiro de 22 e 30, no Gullar da A luta corporal, na Tropicália, em poéticas como a de Cacaso, Ana C.
e Francisco Alvim, enfim, essa apreensão oral do poético que já nos anos 80 foi
responsável pela efervescência da palavra cantada de um Cazuza, um Renato Russo
e, também, um Arnaldo Antunes, na senda aberta por um Itamar Assumpção ou mesmo
um Péricles Cavalcanti.
O esforço de
racionalização de Bonvicino tem prosseguimento no seu livro posterior a 33 poemas, intitulado singelamente de Outros poemas (Iluminuras), publicado em
1993, e em seu Ossos de borboleta (Editora
34), aparecido em 1996, título que é um achado, sim, mas um achado preciosista.
Em Ossos de borboleta, Bonvicino
atinge o ápice do seu esforço de racionalização e se evidenciam sua impossibilidade
de conceber uma poesia totalmente distanciada do lugar de onde o poeta fala, o
que se deve ao fato de ser um poeta egresso do ambiente nada “clean”, para não
dizer insalubre, dos anos 70.
Não se trata de
poeta dos anos 90, tanto que acertadamente não foi incluído na antologia que
Heloísa Buarque de Hollanda organizou dessa geração, Esses poetas (Aeroplano, 1998). Seu livro Céu-eclipse (Editora 34, 1999) tem, sobretudo, o mérito de mostrar
por que Bonvicino é prevalentemente um poeta intervalar, do intervalo entre os
anos 70 e 90. Ainda é um poeta que experiencia a cidade, que anda pelas ruas,
que se envolve, de alguma forma, com o mundo exterior, apreende fragmentos
desse mundo.
Contudo, estão
no Régis Bonvicino dos três primeiros livros citados – 33 poemas, Outros poemas
e Ossos de borboleta –, bem como em
muitos dos poemas de Céu-eclipse, as
diretrizes básicas da poesia da Geração 90, sendo a principal delas o
posicionamento do poeta na cena poética, no instante de concepção do poema, que
é um posicionamento de observador, ideologicamente descomprometido, tanto
quanto possível, com o que observa. O próprio Bonvicino logra sugerir o que
sucede numa observação descomprometida e numa observação comprometida. Observemos
dois momentos de Céu-eclipse:
O
sol
O
sol é céu
em
forma de azul
que
a água não repete
mesmo
em reflexo
mente
é
a forma de corpo
sentindo-se
resignada
um
e outro
como
o vento na água
031197
Eu
também moro nas ruas. Uma ponta de cigarro na orelha e um cinzeiro – na mão.
“Você não parece morar nas ruas”. Um caco de dente na boca. Naquele instante,
edifícios saqueavam sombras, insones, parindo cobras. Ele poderia subitamente
ter sacado a faca, na calçada, disseram. Há margens debruadas de luzes.
Edifícios cúbicos movendo-se sob arcadas de samaúmas. Esquinas defuntas? E, sob
um arco, down town, lâmpadas inchadas medindo o horizonte. Correm vozes em
desordem, mudas, e um guincho talvez de guaxanim. De tarde, corvos latindo nas
árvores e cacto abrupto da casa. Estradas guiando noites. Quase ao lado do
Johnnie´s, Coffee shop, com seu leve jogo de luzes. Paredes não se encolhiam
como sono. Acqua & branco. Alba imóvel dentro do quarto.
Nisso que estou
chamando de observação ideologicamente descomprometida, a realidade observada
mostra-se como algo facilmente manipulável por parte do observador, não
resistindo ao seu modo de observação, ao seu ponto de vista: “Sol é céu”,
“mente/ é forma de corpo”, “um e outro” são “como o vento na água”, ou seja,
nada de anormal, tudo muito natural. Por outro lado, a observação comprometida
com o que se observa, empenhada em conhecer intimamente a realidade observada,
interpela o observador: “Você não parece morar nas ruas”, diz essa realidade. E
o observador libera a escrita, conota, duvida, cogita: “Ele poderia subitamente
ter sacado a faca”.
A realidade,
quando observada de perto, com um sujeito comprometido com sua compreensão, revela-se
ativa, ofensiva, agressiva. O posicionamento distanciado da realidade observada
é, na poesia dos anos 90 no Brasil, uma tentativa, da parte do poeta, de se
preservar de um possível envolvimento comprometedor com o entorno, uma
precaução em relação a possíveis agressões perpetradas pelo exterior, pelo
“lado de fora” do pensamento, como diria Foucault. Trata-se de um
posicionamento, portanto, estratégico, político, que evita o confronto. A base
implícita desse posicionamento não poderia ser outra senão um policiamento da
sensibilidade, um controle das forças emotivas.
Carlito Azevedo
Não é Bonvicino,
como foi dito, que radicaliza esse tipo de posicionamento diante da realidade,
não cabendo a ele, assim, o mérito ou demérito pela articulação definitiva da
poeticidade com a politicidade e a policialidade na poesia dos anos 90 – o
poeta paulista, talvez até involuntariamente, apenas abre caminho para tal
procedimento. Quem realiza essa articulação definitiva é Carlito Azevedo, poeta
típico dos anos 90, cuja estreia se dá justamente em 1991, com Collapsus linguae (Imago), uma poesia
basicamente literária, “sampleando” as mais diversas poéticas, do poema-minuto
modernista às destruições morfossintáticas dos concretos.
Percebe-se, ao
lado dessa vontade de conciliação de linguagens, inegavelmente ligada ao desejo
de legitimação de um discurso, um pendor espontâneo à ironização que confere um
tom “decadentista” a Collapsus linguae,
um movimento no sentido de resgatar o horizonte poético jocoso de um Tristan
Corbière, por exemplo, um movimento que nunca logrou despertar muito o interesse
dos poetas brasileiros. Talvez apenas Sebastião Uchoa Leite, Leminski e o
primeiro Bonvicino, de livros como Régis
hotel (1978) e das versões de Jules Laforgue, tenham sido os poetas brasileiros
contemporâneos mais sensíveis a essa vertente “coloquial-irônica”, da qual parecia,
naquele início dos anos 90, que Carlito Azevedo se tornaria um mestre.
O primeiro livro
de Carlito nos revela um poeta geneticamente bem humorado, transitando em meio
aos enunciados autoritários do mundo artístico-literário, sem querer aderir a
nenhum deles, repetindo todos, respeitando todos. Tratava-se apenas, ao final
das contas, do poeta estratégico, que desconfiava de tudo que ouvia já no
início do processo de concepção do poético, um poeta que só assimilava o
“estalo”, o ruído, após proceder à sua estilização, como está dito no poema “Da
inspiração”, que é o atestado preciso da poesia dos anos 90 no país:
Desconfiar
do estalo
Antes
de utilizá-lo
Mas
sendo impossível
De
todo aboli-lo
Desconfiar
do estalo
Dar
ao estalo estilo
Anelito de
Oliveira, editor deste Orobó | Kadernu di Ynwenssões, criou e editou o jornal
Não (1994/95) e a revista Orobó (1997/99), que voltará a circular impressa e
digital em abril próximo. Dirigiu o
Suplemento Literário de Minas Gerais (1999/2003), publicou inúmeros autores pela Orobó Edições, editora que criou
em 1998 em Belo Horizonte e pela qual está lançando, no momento, os livros Transtorno, A ocorrência e Mais que o
fogo, primeiros volumes da série Acontecimentos Criativos, pela qual será
divulgada toda sua produção poética. O texto acima é um
ensaio originalmente apresentado como conferência em 2000, na Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES), que permaneceu inédito. As imagens, na sequência, são: Heloísa Buarque de Hollanda, Charles Baudelaire, Wallace Stevens, Régis Bonvicino e Carlito Azevedo.
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