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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Poetas, políticos e polícias / Anelito de Oliveira






À procura do elo perdido


A poesia brasileira aparecida ao longo da década de 1990 foi vista com bastante entusiasmo, principalmente por pesquisadores universitários, por poetas estabelecidos que se reconheciam como seus influenciadores e, claro, pelos próprios novos poetas. Pode-se falar mesmo de uma certa unanimidade, entre os produtores e receptores dessa poesia, em torno de um caráter positivo da diversidade de linguagens que caracteriza aquele momento, tanto em termos formais quanto conteudísticos, o que não aconteceu em períodos anteriores, sempre marcados por posicionamentos ortodoxos, pela intransigência dos grupos fundamentados em valores estéticos e ideológicos.

Nos anos 90, cada um passou a fazer o que queria fazer: poesia verbal, visual, videopoesia, infopoesia, poesia sonora, soneto, poema-piada, balada, hai-kai, poesia negra, poesia gay, poesia feminina, neobarroca, modernista etc, um vale tudo. Assistimos, sem dúvida, a um espetáculo de democracia na cena poética, reflexo natural da chamada “abertura democrática” de 1985. Nunca se escreveu tanto, nunca a produção de livros de poesia foi tão grande, nunca houve tantas revistas voltadas para a divulgação de poesia.

Impossível negar a importância de toda essa efervescência para o processo sociocultural brasileiro como um todo, impossível negar a pertinência da democratização do espaço poéticoliterário. Não é isso, portanto, que pretendo sequer sugerir nestas linhas, não quero, para lembrar Leminski, “fazer chover no piquenique” da geração 90, mas apenas introduzir uma interpretação que me parece relevante, uma problematização fundamental em toda tarefa de interpretação, que é a de restabelecer o elo entre a voz e o lugar.

Esse elo, que corresponde à relação entre ideias e coisas, perde-se, oblitera-se ou dispersa-se inevitavelmente quando se fala, e, mais ainda, quando se escreve, ainda mais quando se trata de uma escrita incontrolavelmente conotativa, como é o caso da escrita literária e, de maneira muito particular, da escrita poética. Quando se escreve, perturba-se, inevitavelmente, a relação natural entre planos ideal e real; quando se escreve muito, a tendência é essa perturbação aumentar, tudo se nos apresentando embaralhado.

A perturbação é inerente à escrita, que vem a ser o alicerce da democracia, como argumenta Jacques Rancière em Políticas da escrita (Editora 34, 1995, p. 9-15): 

Ora, a escrita é aquilo que, ao separar o enunciado da voz que o enuncia legitimamente e o leva a destino legítimo, vem embaralhar qualquer relação ordenada do fazer, do ver e do dizer. A perturbação teórica da escrita tem um nome político: chama-se democracia. (...) Há democracia – e política, consequentemente – porque há palavras sobrando, palavras sem referente e enunciados sem pais que desfazem qualquer lei de correspondência entre a ordem das palavras e a das coisas. A deserção democrática da incorporação comunitária é solidária da deserção literária da encarnação. Literatura e democracia são dois modos de invenção de quase-corpos ou de incorpóreos cujo dispositivo fragiliza as encarnações e as identificações que ligam uma ordem do discurso a uma ordem das condições. Essa comunidade estética da separação é uma comunidade política da deslegitimação.









Do Barroco a Baudelaire


Nossa “comunidade” ocidentalizada tem em comum a experiência do “veto ao ficcional”, do “controle do imaginário”, como explorou exaustivamente Luiz Costa Lima (O controle do imaginário & A afirmação do romance, Companhia das Letras, 2009), toda uma tradição de repressão que a arte tem procurado, desde os antigos trágicos gregos, rechaçar, um ideal intimamente ligado à vontade de humanização do homem, como ficou modernamente dito pelos românticos alemães, de Goethe a Novalis. Rechaçar a tradição da repressão equivale a instaurar o “regime da letra órfã”, nos termos de Rancière, independente de “pai”, a letra arbitrária, selvagem, subversiva, que não depende de um Senhor para legitimá-la, como se ela não pudesse realmente estabelecer-se na presença do “pai”.

Este entendimento está claro, a meu ver, nas três principais poéticas da Modernidade ocidental: a barroca, a romântica e a simbolista, poéticas da desrepressão, pode-se dizeer, marcadas que são pela vontade de fazer emergir as sombras, as incompletudes, os dilaceramentos que constituem o sujeito no mundo. Interessante notar que aquilo que consideramos Barroco é relativamente “vizinho” de dois eventos de “liberação” da letra, o Renascimento e a invenção da imprensa. Barroco, Romantismo e Simbolismo são poéticas que, diferentemente da poética clássica de extração romana, não se relacionam de forma autoritária com o real, o que lhes permite colocar em xeque qualquer primado absolutizante de verdade, de belo, logrando explicitar, consequentemente, a crise do sujeito.

O reconhecimento do significado profundamente positivo dessas poéticas veio, a partir do final do século XIX, dos próprios modernismos, sobretudo, que no fundo são, por toda parte, reverberações do Barroco, do Romantismo e do Simbolismo, como, frisando as duas últimas poéticas, reconhece Alfredo Bosi, no seu O ser e o tempo da poesia (Cultrix, 1990, p. 151):
(...) a verdadeira poesia seguiu a senda aberta pelos românticos e pelos simbolistas inventando mitologias libertadoras como resposta consciente e desamparada às tensões violentas que se exercem sobre a estrutura mental do poeta. O Surrealismo e o Expressionismo são viveiros de mitos pessoais ou de pequenos grupos em que se projetam desejos de expansão titânica ou demoníaca de homens cuja força de ação se inflete sobre si mesma, incapazes que são de dominar sistemas cada vez mais anônimos. Demiurgo da própria impotência, o poeta tenta abrir no espaço do imaginário uma saída possível.

Dessas três poéticas descende a imagem que temos do poeta na modernidade. O poeta como estranho, o albatroz baudelairiano, “exilé sur le sol”, impedido de voar pelas próprias asas gigantes, o satã, o amaldiçoado, o maldito, o rebelado, o abandonado, o isolado. Tudo isso vale para Baudelaire tanto quanto para Rimbaud, Mallarmé, Blake, Hölderlin, Whitman, Cruz e Sousa etc. Baudelaire é a imagem-síntese do poeta na alta modernidade, o lírico que flana entre as ruínas do capitalismo, como o fixou Walter Benjamin (Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, Brasiliense, 1994), mas também o poeta que estabelece uma conexão entre a modernidade, socioeconomicamente entendida, e o Barroco, operando com uma “raison baroque”, como mostra Christine Buci-Glucksmman (La raison baroque: de Baudelaire a Benjamin, Galilé, 1984).

Essa imagem baudelairiana do poeta contém, portanto, uma estranheza psíquica, cultural, espacial e temporal, toda uma estrangeiridade que, até mesmo em função da sua encarnação no século XIX, passou a constituir a identidade do poeta nas primeiras três décadas do século XX. A imagem-Baudelaire está em Maiakóvski, em Lorca, em Pound, em Eliot, em Celan, em Trakl, em Vallejo, em Pessoa, em Sá-Carneiro, em Paz; está, em termos nacionais, em Mário, em Oswald, em Emílio Moura etc. Entretanto, no caso do Brasil, essa imagem aparece encarnada já no século XIX em Cruz e Sousa, que, através de Baudelaire, passou a “pensar a arte como espaço de representação dos abismos, da dor e do horror”, conforme o lúcido olhar de Ivone Daré Rabello (Um canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa, Nankin/Edusp, 2006).

Também assimilam essa imagem poetas como os mineiros Alphonsus de Guimaraens e José Severiano de Rezende, mas é Cruz e Sousa que, com seu negro inferno, confere um traço diferencial brasileiro a essa imagem. Cruz e Sousa não é, obviamente, paradigma para a produção poética brasileira do século XX, apesar de sua fortuna crítica, de seus inúmeros adoradores e do respeito que muitos nomes ilustres lhe devotaram. Cruz e Sousa, que mais se aproxima da imagem baudelairiana do poeta, tem alguma coisa a ver com a desconexão dos poetas dos anos 1990 com Baudelaire no Brasil? Com esta pergunta, retornemos ao agora.






A imagem-Stevens


Grande parte da poesia produzida nos anos 90 no Brasil é marcada por procedimentos comuns, cada livro parece com outro já lido, uma identificação que diz respeito, sobretudo, aos limites do dizer. A impressão que fica, ao fim de cada leitura, é que havia uma espécie de “código de trânsito” naquela produção que não podia ser subvertido, um código que todos os poetas conheciam “de cor e salteado” e, naturalmente, respeitavam. Esse cumprimento rigoroso do “código” é justamente o que nos faz pensar num controle da sensibilidade, da sensação, que resulta num sufocamento da dimensão empírica do sujeito em função de uma suposta dimensão mais racional.

Tal procedimento teve suas motivações em leituras de João Cabral e dos concretos paulistas, leituras que privilegiaram aquilo que acabou conferindo singularidade a essas poéticas, o racionalismo, leituras superficiais, portanto, já que essas poéticas também têm seu delírio, sua paradoxal transcendência na imanência. Cabral, Augusto de Campos e Haroldo de Campos – Décio Pignatari nem tanto – acabaram se tornando os poetas mais influentes na década de 90, até porque se tornaram os mais presentes na cena poética, uma vez que Carlos Drummond de Andrade e Paulo Leminski, que tinham uma presença marcante, morreram ainda no fechamento dos anos 1980, em 1987 e 1989, respectivamente.

Drummond “rivalizava”, no bom sentido do Harold Bloom de The anxiety of influence (Oxford University Press, 1997), com Cabral, praticando uma poesia ligada ao dia-a-dia, factual, dialógica; Leminski “rivalizava” com os concretos, praticando uma poesia pop, jovial, “malandra”. Drummond e Leminski conceberam uma linguagem poética, a um só tempo, rigorosa e prazerosa, para lembrar Barthes, que tocava fundo – e ainda toca – na existência do leitor. Esses dois poetas mantinham o elo com a imagem do poeta baudelairiano, o que era quase óbvio no caso de Drummond, nascido na alvorada do século XX, egresso da primeira hora modernista.

Não era tanto de se esperar que Leminski mantivesse tal elo, não apenas devido ao fator idade, mas, sobretudo, devido à intervenção da cultura norte-americana na formatação da sensibilidade de sua geração, através do rock, da “pop art”, do cinema etc. O poeta de La vie en rose, que alardeia em seus últimos dias uma grande admiração pelo cinema – não-holywoodiano, claro – norte-americano, mantém-se ligado à imagem-Baudelaire, bem como a todo o Simbolismo, mantém-se intimamente conectado à cultura europeia, portanto. Talvez a conjunção América/Europa em Lemisnki tenha seu estímulo em Oswald de Andrade: “O cinema americano informará”, como diz o “Manifesto antropófago” (A utopia antropofágica, Globo, 1990).   

O desaparecimento de Drummond e Leminski, dois “poetas fortes”, para falar ainda com Bloom, coincide com o início de um processo de adesão entusiasmada do segmento letrado da sociedade brasileira ao eixo cultural estadunidense. Trata-se, evidentemente, da consumação de um fato que vinha se verificando desde os anos 1960, sempre encontrando resistência por parte da grande maioria dos letrados, que se engajava ardorosamente em lutas contra o chamado “capital estrangeiro”. No fim dos anos 80, essas lutas perdem seu sentido e, automaticamente, a língua inglesa passa a ter primazia em relação à francesa e poetas modernistas norte-americanos, como Wallace Stevens e Williams Carlos Williams, são amplamente difundidos no centro cultural brasileiro, isto é, Rio e São Paulo.

Os grandes debates, então, deixam de ser em torno de poesia para ser em torno de tradução de poesia, especialmente do inglês para o português, uma luta em torno da fidelidade ao original. O poeta paulistano Régis Bonvicino se tornaria ao longo dos anos 90 o principal divulgador da poesia contemporânea estadunidense no Brasil, traduzindo e editando autores como Robert Creeley, Douglas Messerli e Michael Palmer. Todavia, foi num modernista, Wallace Stevens, que muitos novos poetas brasileiros do fim dos anos 80, que queriam se diferenciar dos “marginais” dos anos 70 tanto quanto da disciplina cerebral dos concretos, encontraram um referencial altamente plausível, uma poesia sensata, digamos, sem radicalismos formais nem conteudísticos, sem agonia, sem delírio, numa palavra: sem relações comprometedoras. A propósito, Paulo Henriques Brito, responsável pela tradução de Stevens para uma edição da Companhia das Letras, chega a declarar que aprendeu fazer poesia também com esse exercício (“O filho rebelde de Cabral”, entrevista a Carlos William Leite, Revista Bula, 2008, www.revistabula.com / acesso: 13/02/2013)

Desprovida da profundidade romântica que caracteriza a modernidade, a poesia de Stevens, superficiosa, voltada para a descrição das coisas, nunca para a decidida alteração da ordem natural das coisas, torna-se o paradigma da poesia brasileira que se estabelece nos anos 90. Nesse paradigma, pode-se dizer que os poetas desta última década do século reconheceram um uso da escrita capaz de não repetir aquilo que, para eles, talvez tenha sido um “erro”, a causa dos desastres que perseguiram os poetas da aurora da modernidade aos anos 70. Reconheceram, portanto, uma “política da escrita” mais eficaz, mais apropriada para a “nova ordem” sociocultural, um olhar que direciona o poema não para o dissenso – que está no cerne da política mesma, conforme Rancière –, mas para o consenso, que configura a anulação da política.






Régis Bonvicino


As instituições que zelam pela civilidade, sobretudo a Universidade e a imprensa, contribuíram de forma decisiva, ao longo dos anos 90, para o estabelecimento de um novo paradigma no cenário poético brasileiro, para uma conversão da imagem-Baudelaire em imagem-Stevens, do maldito em bendito, essa migração do poeta de um mundo “sujo” para um mundo “clean”. Setores da universidade e da imprensa acabaram por reconhecer bom gosto nesse paradigma e o legitimaram, cabendo aos poetas colocá-lo, portanto, em prática.

Coube a Régis Bonvicino dar início a esse processo de “stevenização”, como poderíamos chamá-lo, da poesia brasileira, com seu 33 poemas (Iluminuras), aparecido justamente em 1990, livro em que se confrontam duas sensibilidades, aquela “coloquial-irônica”, que Edmund Wilson identificou num pólo do Simbolismo francês, e outra, racionalizante, não exatamente “sérioestética”, como o crítico norte-americano também definiu o pólo Mallarmé-Valéry. Racionalizante porque já não está em questão a “seriedade”, muito menos a “estética”, mas uma tentativa de racionalizar o poema, o que implica, naturalmente, um distanciamento do lugar do acontecimento poético.

Bonvicino, nesse esforço de racionalização, promove uma considerável alteração no “rosto” do poema, conferindo-lhe um aspecto escritural, de coisa grafada no papel, não mais “soprada” contra o papel, depois de ter sido flagrada no ouvido, como ocorreu no modernismo brasileiro de 22 e 30, no Gullar da A luta corporal, na Tropicália, em poéticas como a de Cacaso, Ana C. e Francisco Alvim, enfim, essa apreensão oral do poético que já nos anos 80 foi responsável pela efervescência da palavra cantada de um Cazuza, um Renato Russo e, também, um Arnaldo Antunes, na senda aberta por um Itamar Assumpção ou mesmo um Péricles Cavalcanti.

O esforço de racionalização de Bonvicino tem prosseguimento no seu livro posterior a 33 poemas, intitulado singelamente de Outros poemas (Iluminuras), publicado em 1993, e em seu Ossos de borboleta (Editora 34), aparecido em 1996, título que é um achado, sim, mas um achado preciosista. Em Ossos de borboleta, Bonvicino atinge o ápice do seu esforço de racionalização e se evidenciam sua impossibilidade de conceber uma poesia totalmente distanciada do lugar de onde o poeta fala, o que se deve ao fato de ser um poeta egresso do ambiente nada “clean”, para não dizer insalubre, dos anos 70.

Não se trata de poeta dos anos 90, tanto que acertadamente não foi incluído na antologia que Heloísa Buarque de Hollanda organizou dessa geração, Esses poetas (Aeroplano, 1998). Seu livro Céu-eclipse (Editora 34, 1999) tem, sobretudo, o mérito de mostrar por que Bonvicino é prevalentemente um poeta intervalar, do intervalo entre os anos 70 e 90. Ainda é um poeta que experiencia a cidade, que anda pelas ruas, que se envolve, de alguma forma, com o mundo exterior, apreende fragmentos desse mundo.

Contudo, estão no Régis Bonvicino dos três primeiros livros citados – 33 poemas, Outros poemas e Ossos de borboleta –, bem como em muitos dos poemas de Céu-eclipse, as diretrizes básicas da poesia da Geração 90, sendo a principal delas o posicionamento do poeta na cena poética, no instante de concepção do poema, que é um posicionamento de observador, ideologicamente descomprometido, tanto quanto possível, com o que observa. O próprio Bonvicino logra sugerir o que sucede numa observação descomprometida e numa observação comprometida. Observemos dois momentos de Céu-eclipse:


O sol


O sol é céu
em forma de azul
que a água não repete
mesmo em reflexo

mente
é a forma de corpo
sentindo-se
resignada

um e outro
como o vento na água




031197


Eu também moro nas ruas. Uma ponta de cigarro na orelha e um cinzeiro – na mão. “Você não parece morar nas ruas”. Um caco de dente na boca. Naquele instante, edifícios saqueavam sombras, insones, parindo cobras. Ele poderia subitamente ter sacado a faca, na calçada, disseram. Há margens debruadas de luzes. Edifícios cúbicos movendo-se sob arcadas de samaúmas. Esquinas defuntas? E, sob um arco, down town, lâmpadas inchadas medindo o horizonte. Correm vozes em desordem, mudas, e um guincho talvez de guaxanim. De tarde, corvos latindo nas árvores e cacto abrupto da casa. Estradas guiando noites. Quase ao lado do Johnnie´s, Coffee shop, com seu leve jogo de luzes. Paredes não se encolhiam como sono. Acqua & branco. Alba imóvel dentro do quarto.




Nisso que estou chamando de observação ideologicamente descomprometida, a realidade observada mostra-se como algo facilmente manipulável por parte do observador, não resistindo ao seu modo de observação, ao seu ponto de vista: “Sol é céu”, “mente/ é forma de corpo”, “um e outro” são “como o vento na água”, ou seja, nada de anormal, tudo muito natural. Por outro lado, a observação comprometida com o que se observa, empenhada em conhecer intimamente a realidade observada, interpela o observador: “Você não parece morar nas ruas”, diz essa realidade. E o observador libera a escrita, conota, duvida, cogita: “Ele poderia subitamente ter sacado a faca”.

A realidade, quando observada de perto, com um sujeito comprometido com sua compreensão, revela-se ativa, ofensiva, agressiva. O posicionamento distanciado da realidade observada é, na poesia dos anos 90 no Brasil, uma tentativa, da parte do poeta, de se preservar de um possível envolvimento comprometedor com o entorno, uma precaução em relação a possíveis agressões perpetradas pelo exterior, pelo “lado de fora” do pensamento, como diria Foucault. Trata-se de um posicionamento, portanto, estratégico, político, que evita o confronto. A base implícita desse posicionamento não poderia ser outra senão um policiamento da sensibilidade, um controle das forças emotivas.







Carlito Azevedo


Não é Bonvicino, como foi dito, que radicaliza esse tipo de posicionamento diante da realidade, não cabendo a ele, assim, o mérito ou demérito pela articulação definitiva da poeticidade com a politicidade e a policialidade na poesia dos anos 90 – o poeta paulista, talvez até involuntariamente, apenas abre caminho para tal procedimento. Quem realiza essa articulação definitiva é Carlito Azevedo, poeta típico dos anos 90, cuja estreia se dá justamente em 1991, com Collapsus linguae (Imago), uma poesia basicamente literária, “sampleando” as mais diversas poéticas, do poema-minuto modernista às destruições morfossintáticas dos concretos.

Percebe-se, ao lado dessa vontade de conciliação de linguagens, inegavelmente ligada ao desejo de legitimação de um discurso, um pendor espontâneo à ironização que confere um tom “decadentista” a Collapsus linguae, um movimento no sentido de resgatar o horizonte poético jocoso de um Tristan Corbière, por exemplo, um movimento que nunca logrou despertar muito o interesse dos poetas brasileiros. Talvez apenas Sebastião Uchoa Leite, Leminski e o primeiro Bonvicino, de livros como Régis hotel (1978) e das versões de Jules Laforgue, tenham sido os poetas brasileiros contemporâneos mais sensíveis a essa vertente “coloquial-irônica”, da qual parecia, naquele início dos anos 90, que Carlito Azevedo se tornaria um mestre.

O primeiro livro de Carlito nos revela um poeta geneticamente bem humorado, transitando em meio aos enunciados autoritários do mundo artístico-literário, sem querer aderir a nenhum deles, repetindo todos, respeitando todos. Tratava-se apenas, ao final das contas, do poeta estratégico, que desconfiava de tudo que ouvia já no início do processo de concepção do poético, um poeta que só assimilava o “estalo”, o ruído, após proceder à sua estilização, como está dito no poema “Da inspiração”, que é o atestado preciso da poesia dos anos 90 no país:


Desconfiar do estalo
Antes de utilizá-lo

Mas sendo impossível
De todo aboli-lo

Desconfiar do estalo
Dar ao estalo estilo      





Anelito de Oliveira, editor deste Orobó | Kadernu di Ynwenssões, criou e editou o jornal Não (1994/95) e a revista Orobó (1997/99), que voltará a circular impressa e digital em abril próximo.  Dirigiu o Suplemento Literário de Minas Gerais (1999/2003), publicou inúmeros  autores pela Orobó Edições, editora que criou em 1998 em Belo Horizonte e pela qual está lançando, no momento, os livros Transtorno, A ocorrência e Mais que o fogo, primeiros volumes da série Acontecimentos Criativos, pela qual será divulgada toda sua produção poética. O texto acima é um ensaio originalmente apresentado como conferência em 2000, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que permaneceu inédito. As imagens, na sequência, são: Heloísa Buarque de Hollanda,  Charles Baudelaire,  Wallace Stevens, Régis Bonvicino e Carlito Azevedo.

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