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domingo, 4 de abril de 2021

Seis poemas de Raimundo Carvalho






Pássaro-menino:

Da janela me capturo,

Passado e futuro




*



Ikebana

Mãe, noite de inverno,

Em nosso jardim,

Flores, de sereno

úmidas, colhi.

 

Num jarro de vidro,

Dispus: oferenda

ao deus que, aos meus dias.

Os teus acrescenta,

 

Dando à minha vida

Dimensão do eterno,

Neste instante único,

 

Em que te vislumbro,

Cristal transparente,

refratado em mim.

 







*

 


Hino a Iemanjá

 

Senhora dos Navegantes,

Rainha e estrela do mar,

Minha mãe Afrodite,

Minha afrodeusa,

Senhora Iemanjá.

 

Récif... Écume... Étoile

 

Ave cheia de graça,

É amaro viver na terra,

É doce morrer no mar!

Odoyá...

 

Odoyá,

Perdoa esse caboclo,

que arranha o francês,

mas não sabe Iorubá.


 

*



Seara que se ara à meia?

Não me aprazem os poetas,

senhores da dor alheia,

Mas só aquele que sulca

a própria dor e a semeia.







 

*



De norte a sul; de leste a oeste,

(O poeta apressado se esquece!)

A poesia surge da prece.

 


*


 

Cabeça de peixe

 

Nada quebra o silêncio da cozinha,

onde, de noite, me lambuzo, dedo

e língua, e esquadrinho as guelras

e as mandíbulas de um tremendo peixe,

restos de uma moqueca  que almocei

ao meio-dia,  postas sobrepostas

à cebola e tomate.   Entre camadas,

a cabeça do peixe se escondia

na panela de barro, quente à beça.

 

Nada quebra o silêncio da cozinha,

quando, parece que , ofegante ainda,

afronta, barbatana em riste, as verdes

ondas de azeite, cebolinha e coentro

- maré de colorau -, mar de  sargaço;

nem,  ao romper do crânio da carcaça

as placas laterais, rumor algum

 interrompe a sucção do muco e, tácita,

sua arcada dentária se arreganha.

 

Nada quebra o silêncio da cozinha,

enquanto sugo com cuidado cada

osso.  Esse aqui é das narinas, sinto,

e um leve som do oco de ocarina,

entre os meus beiços sai, nota monótona,

fragmento de uma música marinha,

ecoando o coro de corais longínquos.

Ah! essa cartilagem é do  ouvido,

e como vibra o mar no céu da boca!

 

Nada quebra o silêncio da cozinha,

nem mesmo quando no palato gruda-se

a lente de contato que recobre

o seu globo ocular, ásperas pérolas

que a minha gula não engole, mas

a mente devaneia:  o que esses olhos

de peixe morto viram (hipocampos

 e sereias?) no mar azul-turquesa,

antes de verem, num  anzol , a isca?

 








Raimundo Carvalho (1958) nasceu em Pirapora-MG. É professor da Universidade Federal do Espírito Santo desde 1993, onde leciona Latim e Literatura. Publicou Sabor Plastico (1983), Catábase (1989), Brinde (1990), Conversa com o Ciclope (1997) e Língua impura (2019), poemas. Publicou também Murilo Mendes: o olhar vertical (2001), ensaio crítico, Circo Universal (2000), com o qual ganhou o prêmio de Melhor livro infantil na categoria informativo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e Balada do Velho Chico (2017) pela Autêntica. Traduziu as Bucólicas de Virgilio (2005), algumas odes de Horácio e vem traduzindo as Metamorfoses de Ovídio. As imagens são de Ismael Nery (1900-1934), inventor do "essencialismo", artista de trajetória-relâmpago, amigo-irmão de Murilo Mendes, ponto fora da curva do modernismo brasileiro ainda a ser percebido em sua estrangeiridade inquietante.

 

Um comentário:

  1. Coisalinda, é objeto muleta da língua rasteira ligeira afobada pra dizer o que só a poesia de pronto e apanhada sem jeito, diante de beleza consegue dizer

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