Pássaro-menino:
Da
janela me capturo,
Passado
e futuro
*
Ikebana
Mãe,
noite de inverno,
Em
nosso jardim,
Flores,
de sereno
úmidas,
colhi.
Num
jarro de vidro,
Dispus:
oferenda
ao
deus que, aos meus dias.
Os
teus acrescenta,
Dando
à minha vida
Dimensão
do eterno,
Neste
instante único,
Em
que te vislumbro,
Cristal
transparente,
refratado
em mim.
*
Hino
a Iemanjá
Senhora
dos Navegantes,
Rainha
e estrela do mar,
Minha
mãe Afrodite,
Minha
afrodeusa,
Senhora
Iemanjá.
Récif...
Écume... Étoile
Ave
cheia de graça,
É
amaro viver na terra,
É
doce morrer no mar!
Odoyá...
Odoyá,
Perdoa
esse caboclo,
que
arranha o francês,
mas
não sabe Iorubá.
*
Seara
que se ara à meia?
Não
me aprazem os poetas,
senhores
da dor alheia,
Mas
só aquele que sulca
a
própria dor e a semeia.
*
De
norte a sul; de leste a oeste,
(O
poeta apressado se esquece!)
A
poesia surge da prece.
*
Cabeça
de peixe
Nada
quebra o silêncio da cozinha,
onde, de
noite, me lambuzo, dedo
e
língua, e esquadrinho as guelras
e
as mandíbulas de um tremendo peixe,
restos
de uma moqueca que almocei
ao
meio-dia, postas sobrepostas
à
cebola e tomate. Entre camadas,
a
cabeça do peixe se escondia
na
panela de barro, quente à beça.
Nada
quebra o silêncio da cozinha,
quando,
parece que , ofegante ainda,
afronta,
barbatana em riste, as verdes
ondas
de azeite, cebolinha e coentro
-
maré de colorau -, mar de sargaço;
nem, ao romper do crânio da carcaça
as
placas laterais, rumor algum
interrompe a sucção do muco e, tácita,
sua
arcada dentária se arreganha.
Nada
quebra o silêncio da cozinha,
enquanto
sugo com cuidado cada
osso. Esse aqui é das narinas, sinto,
e
um leve som do oco de ocarina,
entre
os meus beiços sai, nota monótona,
fragmento
de uma música marinha,
ecoando
o coro de corais longínquos.
Ah!
essa cartilagem é do ouvido,
e
como vibra o mar no céu da boca!
Nada
quebra o silêncio da cozinha,
nem
mesmo quando no palato gruda-se
a
lente de contato que recobre
o
seu globo ocular, ásperas pérolas
que
a minha gula não engole, mas
a
mente devaneia: o que esses olhos
de
peixe morto viram (hipocampos
e sereias?) no mar azul-turquesa,
antes
de verem, num anzol , a isca?
Raimundo Carvalho (1958)
nasceu em Pirapora-MG. É professor da Universidade Federal do Espírito Santo desde 1993, onde leciona Latim e Literatura. Publicou Sabor Plastico (1983),
Catábase (1989), Brinde (1990), Conversa com o Ciclope
(1997) e Língua impura (2019), poemas. Publicou também Murilo Mendes:
o olhar vertical (2001), ensaio crítico, Circo Universal (2000), com o
qual ganhou o prêmio de Melhor livro infantil na categoria informativo da
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e Balada do Velho Chico (2017) pela Autêntica. Traduziu as Bucólicas de Virgilio (2005), algumas
odes de Horácio e vem traduzindo as Metamorfoses
de Ovídio. As imagens são de Ismael Nery (1900-1934), inventor do "essencialismo", artista de trajetória-relâmpago, amigo-irmão de Murilo Mendes, ponto fora da curva do modernismo brasileiro ainda a ser percebido em sua estrangeiridade inquietante.
Coisalinda, é objeto muleta da língua rasteira ligeira afobada pra dizer o que só a poesia de pronto e apanhada sem jeito, diante de beleza consegue dizer
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