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sexta-feira, 19 de março de 2021

Um poema transpandêmico de João Diniz

 DESVIO DO JÁ

 


1

 

não leia

não leia isso

fadado ao altivo

indiferente olhar 

 

esse texto 

quase inexistiu 

mas quis ser vivo

recusou ser omisso 

 

esse dito não há

é só um desvio do já

 

2

 

calor pio mugido

lidas no bafo da brisa

letras passarinham retinas

sentença revoa na sombra

 

estória pousa

no piscar sonolento

 

livro salta da mão 

onírico verso da pausa

cabeça pende ao papel

e a tarde ígnea escurece

 

como inexistente lenda

esse dia nasceu no ocaso

 

3

 

subitamente

página é espelho

 

refletido olhar 

cruzando o brilho 

invertida palavra

especular sentido 

 

chutando rimas

pisa parágrafos

desafia sílabas

acentos evita 

 

o atalho da virgula

adentra o cristal 

descobre o que diz 

num relato falho  

 

alfabética luz 

revela um conto

piscante sentença  

sem ponto final

 





 

4

 

aguarda o pedido 

imagina o romance

no retardo postal

antecipa a leitura

 

livro ausente

supõe um poema

ditos sem data 

soletradas horas

 

batidas na porta 

cessam o hiato   

rasgado embrulho 

o volume acontece 

 

5

 

trova verso 

rima estrofe

suave segura 

piegas irada

 

soneto balada

quarteto cantiga 

solene ungida

carente amada 

 

salmo protesto 

elegia louvação 

tímida vaidosa 

moderna alterada 

 

leitura sussurro 

blasfêmia oração 

chorosa arisca 

maldita gritada

 

nenhuma fala

propõe mais poesia 

que o primeiro risco

da obra que inicia

 

6

 

somente a semente

materna da árvore 

desenha a folha 

um pincel 

 

através do tronco 

numa vida futura 

sucede a madeira 

o papel 

 

do pensamento 

decola a ideia  

pousando no plano

ditado

 

o quase não lido 

que aqui foi colhido

é fértil silêncio 

falado 







Artista múltiplo de rara inquietação, João Diniz é belo-horizontino nascido em Juiz de Fora, cidade do inventor Murilo Mendes. Arquiteto atuante com seu escritório de projetos, professor universitário e palestrante, JD publicou os livros João Diniz Arquiteturas (2002), Depoimento: Circuito Atelier (2007), Steel Life: arquiteturas em aço (2010), Ábaco(2011), Aforismos Experimentais (2014) e, ano passado, o surpreendente O Livro das Linhas. Participa de edições impressas, fonográficas e audiovisuais, exposições e apresentações voltadas à arquitetura, fotografia, poesia, vídeo, artes visuais, design, música e desenho. Criou e coordena o instigante projeto Pterodata, ações interdisciplinares com outros autores movidas pela ideia de JD de uma transArquitetura. "Desvio do já" foi produzido recentemente em situação de isolamento social, exemplo notável de resistência com, pela, na poesia, um poema transpandêmico que denuncia o nosso mal-estar num tempo tão angustiante. Os desenhos são do próprio artista.

6 comentários:

  1. O discurso poético move corpo e alma em direção a uma saída que não se sabe bem se será encontrada pelo lirismo. Parabéns,poeta João!

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    1. Ei France, a escrita é mesmo algo físico e espiritual, você conhece bem essa ação, obrigado por sua atenção e interações.

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  2. Agradeço aos leitores, à Orobó e ao Anelito pela publicação desse texto e pelos diálogos recentes que ajudam na compreensão da literatura e da realidade. Abs. João Diniz

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  3. O João é um poeta que trabalha na fronteira da arquitetura da linguagem. Seus poemas não permitem espaços para sobras barrocas. Embora repleto do lirismo mineiro, como o outro João, o Cabral, atua na concisão. E pronto

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    1. Obrigado Turiba, sua leitura e comentário iluminam o texto. Nos seus 'Desacontecimentos'também percebo essa concisão, o que me inspira e provoca. obrigado pelos diálogos.

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  4. Admirável esteta, arquiteto, cineasta, poeta
    Único
    Cria , recria traços, longos, espaços
    Talvez
    A página, o livro, a janela, a construção, o povo
    Admirado
    Espiando
    Eternizará tudo
    João... sempre João. Saudades de ti, amigo.

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