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sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Um poema em série de France Gripp




 



A ordem natural da pássara 

 

 

I - Anúncio

 

O pássaro, voando, traz a mensagem:

não é aconselhável o esforço em direção ao alto.

Assim, segue obediente, a voo baixo

plano e prumo, ora sim

ora tanto deslocado

haja vista o grande calor dos fatos.

 

Um pássaro deve permanecer no ninho

até emplumar-se.

Aninhada, empluma-se a pássara,

ganha corpo e graças. 

Relativa, porém, é a autonomia de voo.

Pássaro pode mais.

 

II - Ordem natural

 

Em seu voo o pássaro encontra o infortúnio.

Isso ocorre porque ele se afastou da ordem da natureza.

Não é para menos.

Um olho segue

debicando a paisagem

outro mira-se no sol, desolado.

 

Esforço persistente é

reconhecer-se

na ordem natural das pássaras.








 

III - A gemer

 

A ave azul voa invisível em meus sonhos.

No tempo da vigília, ainda persistem

a memória do ruflar de suas asas,

seus pios apenados a gemer:

amor! amor!  amor!

 

IV – Noturno da pomba

 

Nuvens densas. Nenhuma chuva vem da nossa região oeste.

O príncipe atira e atinge aquilo que está na caverna.

A princesa adormece encantada.

A pomba encanta despertada.

Traz o peito vermelho úmido,

desmanchado.

 

Ai, pombinha, de olhinhos poucos,

de biquinho cálido!

Mira, pombinha, que sexo tão frágil!

Por quê? Por quê? Por quê?

 

V – O fogo

 

Tenho um pássaro atado em meu pescoço.

Tenho a cabeça rodeada pelas nuvens.

Trago um ramo de oliveira e persigo

até o cume dos rochedos, a arara

o celeste avatar do fogo.

Língua de pássara é tudo o que desejo.

 

VI - A preponderância do pequeno

 

Pombo ao rés do chão

cobiça ávido o amarelo,

grãos de milho derramados.

O desperdício ou o acaso

são seu particular tesouro

encontrado

meio à poeira.

 

VII – O grito

 

Se um pássaro levanta voo no momento em que deve ficar quieto,

ele certamente cairá nas mãos do caçador.

Aquieta-te, pássara! Por ora!

Dorida mais que a fratura

ao fim da queda livre

asas feitas em penachos

peito exposto do avesso

 

serão as mãos em teu pescoço

calando-te o grito.




 






France Gripp (Francirene Gripp de Oliveira) é mineira de Governador Valadares radicada há vários anos em Belo Horizonte. Poeta e ficcionista com vários títulos publicados, entre os quais a coletânea de poemas Coração incendiário e a novela  As aventuras de Bera Titan recém-lançada pela Outubro Edições. O poema inédito “A ordem natural da pássara” se  faz a partir de uma relação intertextual com o I Ching, clássico "Livro das mutações" dos chineses. Os versos em itálico correspondem a transcrições literais do Hexagrama 62 desse livro. As imagens são ângulos da monumental "Phoenix", escultura de Xu Bing, um dos maiores nomes da arte contemporânea na China. O mito da ave gigantesca, a "Fenghuang", dos chineses se difere da "Fênix" ocidental na modernidade sobretudo por harmonizar macho (Feng) e fêmea (Huang) numa mesma entidade feminina - pássara empoderada, pode-se dizer.

2 comentários:

  1. Muito bom. Gosto e aprecio a revista, a poeta,o poeta. "Língua de pássara é tudo o que desejo." Me representa. Abraços.

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  2. Mais um belo poema de France. Que liberte outros, muitos outros, para deleite nosso.

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